O Maranhão mergulhou em uma crise política nos últimos dois dias com a divulgação de áudios em que aliados de Flávio Dino, ex-governador e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), tratam de um suposto acordo entre ele e o sucessor, Carlos Brandão (sem partido), com quem está rompido. Por esse acordo, Dino, já no Supremo, teria exigido que seu grupo político assumisse uma prefeitura em troca de liberar indicações do governador para o Tribunal de Contas do estado, foco de ações de que o ministro é o relator.
Os áudios, expostos na tribuna da Assembleia Legislativa pelo deputado estadual Yglésio Moyses (PRTB), mostram trechos de conversas em que os deputados federais Rubens Pereira Júnior (PT-MA) e Márcio Jerry (PCdoB-MA), além do secretário-executivo do Ministério dos Esportes, Diego Galdino, e o desembargador federal Ney Bello — todos aliados de Dino –-, supostamente discutiriam o que seriam termos e condições impostos pelo ministro para selar a paz com o grupo de Brandão.
Moyses é apoiador de Jair Bolsonaro e pré-candidato ao Senado Federal, e teria conseguido os áudios através de “fontes em Brasília”. O material que ele expõe não reproduz a íntegra das conversas e nem revela quem gravou as ligações. Procurada, a assessoria de Flávio Dino afirmou por meio de nota que “o ministro não participou e nem responde por SUPOSTOS diálogos políticos de terceiros”.
“A hipótese é obviamente absurda”, conclui o comunicado. Dino diz que não fala mais sobre política. “O Ministro Dino esteve na política até fevereiro de 2024. De lá para cá, ele virou a chave e está na Judiciário. Portanto, ele não trata mais sobre política. Ele só se manifesta em sessões do STF e nos autos dos processos em que relata”, diz a assessoria do ministro.
Já Rubens Júnior confirma ter abordado a sucessão nas prefeituras e a questão do TCE em conversas com Dino no ano passado, a pedido de Brandão. Mas diz que foi gravado ilegalmente e que os áudios estão fora de contexto, e alega que o ministro se distanciou das tratativas políticas e se recusou a discutir as ações do STF.
O governador Carlos Brandão, por sua vez, divulgou nota em que afirma que “tudo o que veio à público agora já era sabido, porque eles próprios, numa exibição de intimidade com outras forças, falavam abertamente”. Negou, ainda, que tenha sido o autor do áudio. “Eu não gravei, meu governo não gravou. Eles se fizeram gravar” (confira a íntegra da nota ao final da matéria).
‘Zera tudo’
Na gravação exibida por Moyses na Assembleia que envolve Rubens Júnior, o deputado aparece falando no viva-voz durante um telefonema gravado em vídeo, falando em “cumprir o acordo de Colinas (MA) [cidade do interior que é reduto eleitoral de Brandão] e tratar bem quem votou no governador” em 2022.
Na ligação, Rubens Júnior se refere a “ele”. “Ele disse: Júnior, se a gente conseguir avançar nessas duas pautas, zera tudo. Eu libero TCE, a gente faz de conta que a gente nunca se desentendeu em nada na vida. Zera o jogo todo de novo”.
Dino é relator de duas ações contra o processo de escolha de conselheiros para o TCE do Maranhão, apresentadas depois que Brandão indicou um sobrinho para integrar o tribunal. Uma foi proposta pelo partido Solidariedade e outra pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Nas duas, Dino não se declarou impedido e suspendeu o processo de indicação.
Na tarde de terça-feira, já com os áudios circulando em grupos de WhatsApp do Maranhão e reproduzidos em sites locais, Rubens Júnior foi à tribuna da Câmara dos Deputados explicar o episódio, que classificou como fruto de uma “onda de gravação ilegal, clandestina e descontextualizada para atingir pessoas sérias”.
Seu pai, Rubens Pereira, era secretário de Articulação Política de Brandão. Com o escândalo, ele pediu demissão nesta quarta-feira, assim como o secretário Robson Paz (Cidades), do PCdoB de Jerry.
“O governador Carlos Brandão me chama para um diálogo, onde ele me diz: deputado Rubens Júnior, ajude a construir a paz do nosso grupo político. Construção da paz? Sempre vai contar com o meu apoio”, discursou o deputado. “O que ele queria? Que eu fizesse um diálogo com o ministro Flávio Dino, que foi meu orientador na graduação, foi meu padrinho de casamento e companheiro de partido durante muitos anos. E assim eu fui e dialoguei. Quando eu trago o retorno para o governador Brandão e para o seu irmão, Marcus Brandão, pasmem os senhores, eu sou gravado ilegalmente”, declarou na Câmara.
‘Senta e governa’
Essa, porém, não foi a única gravação divulgada por Moyses. Um vídeo exibido pelo deputado mostra a tela de uma conversa por WhatsApp entre Rubens Pereira pai, conhecido como Rubão, e um interlocutor não identificado.
Na troca de mensagens, o secretário de Brandão exibe mensagens encaminhadas que seriam do desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) Ney Bello listando condicionantes políticas para que o governador “sente e governe”, sob risco de “não chegar em abril [de 2026]”, quando em tese ele poderá renunciar para concorrer ao Senado.
Seriam elas: “afastar o irmão [Marcus, irmão de Brandão] de TUDO que diga respeito ao governo”; “entregar as secretarias de volta ao PT ainda que seja com outros titulares com nomes negociados”; “anunciar publicamente que é candidato a senador e Felipe Camarão vai assumir numa ampla coalizão”; “tirar a grande e enorme maioria dos parentes do governo e compor politicamente com a base” e “dizer que não se mete na eleição de ALEMA [Assembleia Legislativa] e o STF que decida”.
“Com isso ele senta e governa”, segue o autor do texto.
No vídeo, a próxima mensagem atribuída ao desembargador ainda diz: “Ele [Brandão] precisa baixar a bola e segurar a arrogância burra dos irmãos! Há alguns inquéritos para estourar e isso vai jogar ele na lama. Ou ele parte para a contenção de danos ou não chega em abril [de 2026]”, dizem as mensagens.
“Se Rubão [pai de Pereira Júnior] quiser usar meu nome como vetor desses cinco itens ele pode usar!”.
Procurado, o desembargador do TRF-1 se manifestou por meio de nota da assessoria do tribunal e não negou a autoria das mensagens, embora aponte “distorções” e “uso político” na “divulgação de gravações clandestinas”. Bello afirmou ainda que foi professor e orientador de Rubens e que os dois conversam sobre vários temas. Mas destacou que não é relator de qualquer processo envolvendo políticos de sua terra natal (leia íntegra da nota ao final do texto).
‘Abro mão do que for’
Um terceiro áudio é atribuído a Diego Galdino, ex-secretário no governo Dino e número dois do ministro dos Esportes, o também maranhense André Fufuca (PP).
“Conversei com o Flávio semana passada. E aí ele conversou pessoalmente comigo e disse com essas palavras que eu vou te dizer aqui: ‘Galdino, conversa com o Felipe [Camarão, vice-governador do PT], conversa com o Brandão, que eu só quero conversar sobre Colinas. Eu só faço questão de Colinas. Deixa para lá Barreirinhas (MA), deixa para lá as outras coisas, que se eles quiserem, se fizerem um gesto para mim, conversar comigo sobre Colinas, para não ter confusão eu queria só queria que mantivesse o acordo de Colinas’.
O áudio continua: “[Flávio disse] ‘eu abro mão de Barreirinhas, abro mão do que for, só preciso que eles resolvam Colinas para mim. Fala para Brandão que eu só preciso que ele resolva Colinas para mim que o resto está superado’”.
Procurado por meio da assessoria de imprensa do Ministério dos Esportes, Galdino não respondeu aos pedidos de entrevista. A assessoria informou que o assunto não diz respeito à pasta e que, “por esse motivo, não há como emitir qualquer tipo de manifestação”.
Colinas
Colinas, município de 40 mil habitantes no interior do estado onde nasceu Carlos Brandão, é o berço eleitoral do governador, mas também base do deputado federal Márcio Jerry, o quarto aliado de Dino envolvido no escândalo.
O “acordo de Colinas” a que os aliados de Dino se referem seria um acerto feito em 2016, pelo qual o irmão de Márcio Jerry, João Haroldo, retiraria a candidatura à prefeito em apoio à escolhida por Brandão, virando vice. Em 2020, ele abriu mão de novo de disputar a cabeça de chapa e aceitou continuar como vice em troca do apoio para a prefeitura em 2024.
Quando chegou a vez dele, porém, Brandão decidiu lançar candidato próprio — Renato Santos (MDB), que derrotou João Haroldo.
Essa é a situação sobre a qual Jerry fala no vídeo de outro telefonema realizado no viva-voz.
No diálogo, o deputado, aparentemente citando a fala de alguém, afirma que a pessoa tem “[…] recebido mensagens de que o governador quer um clima de harmonia e de paz. Diga a ele, e eu estou te autorizando a dizer a ele, que eu também quero esse clima total de paz. Agora, para ter clima de paz é preciso fazer gestos, né. As coisas que pedi, nada foi feito. Então vê aí o que é possível”, diz o parlamentar na gravação, seguida de um corte. “Citou Colinas, citou Barreirinhas (cidade na região dos Lençóis Maranhenses administrada pelo grupo de Brandão)”.
Procurado pela equipe da coluna, Márcio Jerry se disse vítima de “armação” orquestrada pelo irmão do governador, Marcus Brandão, presidente estadual do MDB, e afirmou suspeitar do envolvimento do governador na divulgação das mensagens.
O deputado do PCdoB negou ter tratado sobre TCE com o ministro e disse que discutiu o assunto apenas em março deste ano com o próprio Carlos Brandão, após ser chamado pelo governador para uma reunião.
No encontro, Brandão teria apelado para que o grupo resolvesse diretamente com Dino o imbróglio do Tribunal de Contas.
Rompimento e crise
Flávio Dino foi eleito governador do Maranhão em 2014, reelegeu-se em 2018 e renunciou em 2022 para concorrer ao Senado. O vice, Carlos Brandão, assumiu o governo e concorreu a um novo mandato na chapa, junto com Dino e pelo mesmo partido, o PSB.
Mas os dois foram se afastando progressivamente. O clima piorou de vez após a chegada do aliado ao STF no início de 2024 por indicação de Lula.
Isso porque, menos de uma semana após ingressar na Corte, Dino foi sorteado para relatar duas ações que questionavam a constitucionalidade da indicação de um sobrinho do governador, Daniel Brandão, para o Tribunal de Contas. As ações foram apresentadas pelo Solidariedade e pela PGR.
Além de não se declarar impedido, Dino ainda acatou uma liminar que suspendeu o procedimento de nomeação de conselheiros em março de 2024. O processo até hoje não foi analisado pela Corte.
Foi para tentar resolver esse racha que todos esses aliados se movimentaram.
Na nota em que confirma o teor das negociações, Carlos Brandão afirma que “Rubens Júnior me trouxe o recado, uma oferta. Eu apoiaria a candidatura de interesse do deputado Márcio Jerry em Colinas, e as vagas retidas do TCE seriam liberadas. O próprio Rubens Júnior confirmou na tribuna da Câmara Federal”.
Depois disso, em fevereiro deste ano, Dino ainda suspendeu liminarmente outra nomeação de um aliado de Brandão, a do advogado Flávio Costa.
Nenhuma das tentativas de selar a paz deu resultado – até que tudo veio à tona por meio das gravações exibidas Moyses, que envolveram no escândalo um ministro do Supremo, um desembargador, dois deputados federais e um secretário de Lula.
Leia abaixo, na íntegra, as notas enviadas pelo ministro Flávio Dino, pelo desembargador Ney Bello e pelo governador Carlos Brandão.
Flávio Dino
“A assessoria informa que o ministro não participou e nem responde por SUPOSTOS diálogos políticos de terceiros. A hipótese é obviamente absurda.”
Ney Bello
O Desembargador Ney Bello afirma que foi professor de graduação e mestrado – além de orientador de mestrado – de Rubens Pereira Júnior, além de travarem antiga amizade. Em razão disso, naturalmente conversam sobre todos os assuntos como convém a amigos e é o que cabe na relação acadêmica entre orientador/orientando. Como Magistrado há 30 anos, o professor e desembargador Ney Bello não possui atividade política partidária, e nem é relator de qualquer processo envolvendo políticos de sua terra natal. É de estranhar que conversas deste tipo estejam sendo citadas por terceiros, com distorções e uso político e, pior, acompanhadas de divulgação de gravações clandestinas, como já foi denunciado publicamente por parlamentares.
Carlos Brandão
Em política, tem que ter coerência. Sou parceiro do presidente Lula sob qualquer circunstância, mas aqui no Maranhão tem divisão.
O governo que se encerrou em 2022 quis permanecer no comando da gestão para a qual fui eleito Fui parceiro, mas impus limites. A reação foi insana, agressiva, utilizando-se até de chantagens e barganhas nada republicanas,
Tudo que agora veio a público já era sabido, porque eles próprios, numa exibição de intimidade com outras forças, falavam abertamente. A quem quisesse ouvir e, eventualmente, até gravar.
O deputado Rubens Júnior me trouxe o recado, uma oferta. Eu apoiaria candidatura de interesse do deputado Márcio Jerry em Colinas, e as vagas retidas do TCE seriam liberadas. O próprio Rubens Júnior confirmou na tribuna da Câmara Federal.
Eu não gravei, meu governo não gravou. Eles se fizeram gravar. Agora temem os efeitos dessa exposição vexatória a que se submeteram, expondo nomes de outros níveis e poder.
Uma resposta
O mais curioso? A indignação seletiva. Acusações públicas, só contra os outros. Quando o DNA é de casa, o silêncio vira estratégia — e a defesa, missão de sangue. Coincidência? Só para quem ainda acredita em conto de fadas político.