O Congresso Nacional deixou uma série de brechas para ocultar autores de emendas no projeto aprovado na quinta-feira (13/3), que deveria atender às demandas do Supremo Tribunal Federal (STF) e dar mais transparência aos repasses. O texto foi pautado pelo presidente do Legislativo, Davi Alcolumbre (União-AP), e deixa em aberto um Orçamento Secreto 3.0, com possibilidade de indicações de líderes e alterações de pedidos de repasse sem critérios claros.
Entenda o projeto aprovado pelo Congresso
- Abre possibilidade de líderes indicarem emendas às comissões temáticas;
- Deixa em aberto que alterações em emendas não constem solicitantes;
- Permite que parlamentares enviem emendas de comissão a seus redutos eleitorais;
- Permite o envio de emendas de bancadas estaduais para outros estados.
O texto inicial estabelecia que somente líderes partidários poderiam enviar indicações de emendas às comissões. Para driblar as críticas, o relator, senador Eduardo Gomes (PL-TO), acatou uma emenda e permitiu que qualquer parlamentar faça a indicação. Na prática, as lideranças partidárias continuam com o poder de fazerem indicações representando suas bancadas, sem a devida identificação do político que a solicitou.
As emendas de comissões e de bancadas estaduais formaram o Orçamento Secreto 2.0. Esses repasses deveriam financiar projetos estruturantes, mas passaram a ser rateados informalmente. Eventuais irregularidades dificilmente eram punidas, porque as transferências seguiam a lógica de que, “se todos são responsáveis, ninguém é responsável”. Por isso, elas entraram na mira do STF.
Além de permitir que as comissões recebam as emendas dos líderes de partidos, os colegiados não mais precisarão enviar a verba para projetos de “interesse nacional”. Pelo relatório de Eduardo Gomes, os congressistas também poderão destinar recursos a iniciativas de “interesse regional”, ou seja, que atendam os redutos eleitorais dos seus integrantes.
O relatório de Gomes aceitou modelos de planilhas para indicação de emendas, com espaço adequado para identificação do solicitante. O mesmo texto, porém, também permite que pedidos de alterações das emendas de comissão e de bancada sejam feitas sem a devida identificação, nos termos do solicitante.
O projeto aprovado pelo Congresso ainda indicou possibilidades de envio de emendas de bancadas estaduais para outros estados. De acordo com o texto, isso será possível se o projeto for de “amplitude nacional”, sem mais detalhes sobre o que caracteriza essa definição.
Outra possibilidade, por exemplo, é o envio de recursos para a matriz de uma entidade que, mesmo fora do estado, venderá equipamentos ou realizará os serviços na unidade da Federação da bancada. Ou seja, a bancada de São Paulo poderá enviar emenda que beneficiará entidade no Rio de Janeiro, porque ela venderá produtos ou fará ação em municípios paulistas.
Dino reclama da solução de emendas no Congresso
Relator da ação do STF que questiona a transparência de emendas, o ministro Flávio Dino afirmou que as providências adotadas para garantir maior transparência e rastreabilidade não atingiram o patamar aceitável. O magistrado reclamou do Congresso ao abrir audiência de conciliação sobre um outro caso da Corte.
“Há o diálogo e há decisões que levam a novos diálogos, e assim sucessivamente, para que nós possamos, como houve no Orçamento Secreto, ter um acúmulo de progressos. Mesmo que no caso do Orçamento Secreto estejamos longe do ideal, ainda muito longe do ideal, mas passos concretos foram dados nesses talvez oito meses, creio eu”, frisou Dino.
O trecho mais controverso não cumpre uma exigência do magistrado. Há uma brecha para que líderes partidários possam fazer indicações de emendas de comissão e de bancada, o que pode ser usado para esconder os reais padrinhos da verba, segundo entidades de transparência que acompanham a execução do Orçamento.
Em sentido contrário, em decisão do dia 2 de dezembro, Dino determinou que as emendas de comissão e bancada “devem ser deliberadas nas respectivas bancadas e comissões, sempre com registro detalhado em Ata, na qual deve conter, inclusive, a identificação nominal do(s) parlamentar(es) solicitante(s) ou autor(es) da(s) proposta(s)”.
Parte dos parlamentares defende que as emendas de comissão são, por definição, coletivas. Por isso, não faria sentido deixar o nome de apenas alguns deputados ou senadores, em ata, como solicitantes da verba.
Padronização de planilhas
As emendas parlamentares podem ser individuais e de bancadas estaduais, que são impositivas, ou seja, de pagamento obrigatório; e também de comissões permanentes da Câmara e do Senado — essas últimas sem a necessidade de pagamento obrigatório.
Dino é o relator de diversas ações sobre a “rastreabilidade” do orçamento público e chegou a bloquear a execução desses recursos. Na quinta-feira, o ministro afirmou em audiência no STF, antes da votação no Congresso, que é preciso caminhar para se chegar a um ponto satisfatório, mas reconheceu avanços nas tratativas entre os Poderes nos últimos meses.
— Ainda (estamos) muito longe do ideal, mas passos concretos foram dados — afirmou o ministro.
No mês passado, Dino homologou um plano de trabalho apresentado pelo Congresso em que há o compromisso de identificar os autores das indicações de emendas. A decisão do relator foi confirmada, por unanimidade, pelo plenário do STF, em julgamento encerrado na semana passada.
Com a nova regulamentação, temas considerados importantes pelo Supremo foram normatizados. A partir de agora, por exemplo, deputados e senadores devem seguir os mesmos critérios de transparência para a divulgação do encaminhamento de emendas.
Há previsão de padronização das atas das reuniões das comissões e bancadas, além da criação de planilhas com um modelo único sobre as emendas debatidas nos encontros. Os códigos das emendas e números completos das notas de empenho (quando o dinheiro é reservado) também passam a ser exigidos.
Mas para as ONGs Transparência Internacional, Transparência Brasil e Contas Abertas, a nova regra ignora o ponto central das determinações do STF.
“Neste modelo, as emendas de comissão e de bancada continuarão a seguir em uma lógica na qual se desconhece o parlamentar patrocinador. Desta vez, com um agravante: as indicações serão apresentadas pelos líderes partidários, após reuniões com suas bancadas. Vale lembrar que a Constituição Federal prevê emendas individuais, de comissão e de bancadas estaduais, no entanto, não há qualquer previsão sobre emendas de bancadas partidárias”, diz a nota das entidades.
Na mesma linha, alguns parlamentares contestaram as brechas em plenário.
— Há uma exigência de que as atas das reuniões para debater as emendas sejam assinadas pelos presentes, mas falta indicar quem indicou cada emenda. O trecho traz brechas — criticou a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ).
A deputada Adriana Ventura (Novo-SP) também fez objeção semelhante.
— Qual a dificuldade de colocar uma coluna nas atas das reuniões com o nome dos deputados proponentes? Isto aqui segue um balcão de negócios e ninguém quer transparência. Nada está resolvido em relação à rastreabilidade — afirmou a deputada.
Para o economista e pesquisador associado do Insper Marcos Mendes, o Congresso decidiu ocultar “os nomes dos reais proponentes”. Ele diz que o encaminhamento de emendas por lideranças partidárias não é “um mal em si”, porque os partidos são instituições centrais no sistema representativo.
O pesquisador ressalta, porém, que nos países com boas práticas orçamentárias, as emendas têm valor baixo e inexistem as indicações individuais.
— Aqui (no Brasil) a coisa é diferente. Tem emenda para todo gosto: individual, de bancada, de comissão, todas elas pulverizadas e a maioria impositivas. O jogo aqui é o de usar emendas individuais para os casos em que o parlamentar quer aparecer e ganhar voto, e usar emendas de bancada e, especialmente, as de comissão para casos em que ele não quer aparecer, o que levanta a suspeita de que boa coisa não se está fazendo com o dinheiro — diz o economista do Insper.
O texto aprovado na quinta-feira pelo Congresso não precisa ir à sanção presidencial, por se tratar de uma resolução interna. Mas deve ser avaliado pelo STF no julgamento de ações sobre o tema.
Hoje, já não há como saber quem é o real padrinho das emendas de comissão. Nas plataformas de transparência, a verba fica registrada apenas como “RP-8 – emenda de comissão”, e os cidadãos e órgãos de controle não conseguem identificar qual foi o parlamentar que pediu a indicação.
Parlamentares de partidos de centro argumentaram na quinta-feira que o Congresso está aperfeiçoando a legislação.
— O Parlamento brasileiro é o mais transparente. Estamos cada vez mais aperfeiçoando esse processo — disse o líder da maioria no Congresso, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
Fiscalização e controle
Para Guilherme France, gerente de pesquisa da Transparência Internacional, é preciso alterar a regra sobre emendas de comissão e bancada para que haja mecanismos de fiscalização.
— A resolução aprovada escancara um problema estrutural. Bancadas estaduais e bancadas partidárias foram constituídas como espaços de debate e articulação informal no Congresso Nacional. Por isso, não contam com as regras regimentais e os mecanismos de transparência que, por exemplo, as comissões temáticas têm — avalia.
Segundo ministros do STF, cerca de 80 investigações foram abertas para apurar desvios de emendas, o que gera expectativa e tensão no Congresso.