Estados e municípios deixaram de prestar contas sobre o uso de R$ 3,8 bilhões em emendas Pix, contrariando uma lei aprovada pelo Congresso e indo na direção oposta da transparência exigida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O valor representa 86% do gasto de prefeitos e governadores a partir das verbas direcionadas pelos parlamentares por essa modalidade. O Maranhão deixou de prestar contas de quase R$ 200 milhões em emendas Pix.
Levantamento exclusivo da Transparência Brasil para O GLOBO mapeou o destino dos R$ 4,48 bilhões repassados a prefeituras e governos estaduais no primeiro semestre do ano passado, antes da suspensão determinada pelo ministro Flávio Dino, do STF. Desse total, só há informações detalhadas a respeito do uso de 14%, o equivalente a R$ 627,2 milhões.
Ou seja, não é possível saber como foram utilizados R$ 3,8 bilhões em verbas federais — valor maior, por exemplo, do que o previsto no Orçamento de 2024 para combate a desastres: R$ 2,6 bilhões. A pesquisa mostra que 22 das 27 unidades da federação e 2.757 municípios, metade do total, não apresentaram as informações.
As transferências especiais foram criadas em 2019, com a justificativa de serem menos burocráticas — o valor chega mais rápido ao caixa na comparação com outros repasses.
Entre esses valores sem prestação de contas, há, por exemplo, uma emenda de R$ 17 milhões transferida pelo senador Lucas Barreto (PSD-AP) para Macapá. O montante foi pago pouco antes do início da campanha à reeleição do prefeito Doutor Furlan (MDB), seu aliado, que conquistou um novo mandato.
— É asfalto, passarela, obras… É necessário fiscalizar e garantir que o plano seja executado — pontuou Barreto sobre o repasse.
Já a prefeitura de Macapá disse que cadastrou os planos de trabalho, etapa necessária para o recebimento das emendas, mas que eles não foram divulgados. O município não informou quando vai apresentar os relatórios detalhados sobre a execução dos gastos, fase posterior e também obrigatória.
O estado do Maranhão deixou de prestar contas de quase R$ 200 milhões em emendas Pix.
‘Destino tem que ser claro’
Outro caso é o de Osasco, na Grande São Paulo, que não apresentou o detalhamento do uso de R$ 15 milhões indicados pelo senador Alexandre Giordano (Podemos-SP) e pagos em junho de 2024. Naquela época, o prefeito da cidade era Rogério Lins, seu aliado — ambos apoiavam a candidatura de Gerson Pessoa (Podemos), que acabou eleito.
O senador afirmou que pede explicações aos beneficiários antes de repassar as emendas. Nesse caso específico, a equipe do parlamentar afirma que ele recebeu o pedido da prefeitura de Osasco para indicar recursos para o recapeamento de asfalto.
— Faço tudo de forma objetiva, por requerimento e com apresentação de projeto. A destinação final tem que ser clara — disse Giordano.
O município, por sua vez, informou que a emenda custeou obras de infraestrutura urbana e que as transferências especiais de 2024 já tiveram seus respectivos planos de trabalho entregues, restando apenas o registro da execução.
Na mesma época, Sorriso, no interior de Mato Grosso, recebeu uma emenda de R$ 13 milhões do ministro da Agricultura e senador licenciado, Carlos Fávaro (PSD-MT). A prestação de contas não aparece no sistema que centraliza os dados e é necessário acessar o site da prefeitura para descobrir que a verba foi usada para erguer um viaduto no centro da cidade.
Há ainda menos dados sobre uma indicação do deputado Adail Pinheiro (Republicanos-AM) para Coari, no Amazonas, comandada à época pelo sobrinho do parlamentar — só o valor, R$ 10 milhões, é conhecido. A prefeitura de Coari disse que os documentos estão em fase de “análise e complementação” e que tem “compromisso com a boa gestão dos recursos”. O ministro, o deputado e a prefeitura de Sorriso não responderam.
— O baixo compromisso dos gestores em cumprir o dever de prestar contas do uso das emendas Pix é uma contradição em relação ao que eles dizem sobre a grande importância das emendas para a população. Como a prestação de contas é uma condição para que os entes continuem a receber os recursos, deveria ser tratada como prioridade e cumprida à risca — frisa a diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji.
Repasses bloqueados
De acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, estados e municípios que deixam de cumprir tal obrigação podem ficar impedidos de receber novas emendas Pix até que apresentem as prestações de contas.
“O ente beneficiário de transferência especial deverá comprovar a utilização dos recursos na execução do objeto previamente informado por meio do Transferegov.br até 31 de dezembro de 2024, sob pena de vedação a novas transferências especiais enquanto perdurar o descumprimento, sem prejuízo da responsabilização administrativa, cível e penal do gestor”, diz trecho da legislação.
O trâmite das emendas Pix prevê a entrega de um plano de trabalho, apresentado antes de a emenda ser paga, com o objetivo de indicar o que vai ser feito com o dinheiro. Já a prestação de contas vem depois e deve ser apresentada aos ministérios e de maneira individualizada por emenda.
“O ciclo completo de fiscalização e da aprovação das contas derivadas de ‘emendas Pix’ é de responsabilidade do Tribunal de Contas da União (…) A Controladoria-Geral da União (CGU) e a Polícia Federal são competentes, respectivamente, para fiscalizar e investigar a execução das referidas emendas”, explicou Dino em decisão de dezembro de 2024.
Procurada, a CGU disse que está realizando auditorias sobre a execução dos repasses na modalidade Pix.
As emendas entraram no centro de um impasse entre Judiciário, Legislativo e Executivo em 2022, com o fim do orçamento secreto. No ano passado, o embate ganhou novos capítulos. Dino determinou a suspensão de repasses até que fossem criados novos mecanismos de transparência, o que aconteceu com a aprovação de uma nova lei. O Ministério Público Federal também abriu investigações pelo país centradas nas emendas Pix.
— As cidades brasileiras têm muita dificuldade em prestar conta de seus mandatos. A democracia é um regime constante de delegação de poder, mediante prestação de contas periódicas de políticos — diz Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper. (O Globo)