O reajuste nos preços do gás proposto pela Petrobras às distribuidoras se transformou em uma verdadeira guerra judicial. As concessionárias de Sergipe, Alagoas e Ceará, em conjunto com os governos estaduais, já obtiveram liminares para brecar o aumento médio de 50% nas tarifas de gás de cozinha, industrial e GNV, de carros, a partir do próximo sábado, dia 1º de janeiro.
No Estado do Rio e em São Paulo, a Naturgy já está com tudo pronto para entrar ainda esta manhã na Justiça. O Espírito Santo também entrou com liminar para impedir a alta, mas o pedido foi negado.
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As negociações para a renovação dos contratos de gás canalizado começaram em outubro, quando a estatal propôs reajustes de até 200% por conta do aumento do preço do dólar e do barril do petróleo.
Com o impasse, a Abegás, que reúne as distribuidoras de gás canalizado, entrou com uma representação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), denunciando possíveis práticas anticompetitivas da Petrobras. A estatal, então, interrompeu as negociações e reduziu a alta para 50% nos preços.
Segundo Gustavo De Marchi, consultor jurídico da Abegás, as decisões judiciais são liminares, que obrigam a Petrobras a manter os preços do contrato atual e volumes de fornecimento por mais seis meses, podendo ser renovado por igual período.
De Marchi lembra que havia uma expectativa de que o Cade pautasse o tema ainda este ano, o que não ocorreu.
— A posição do Cade é fundamental. Os preços estão altos por questões conjunturais, e não é prudente refazer um contrato agora, com os valores em alta. Há a expectativa de que esse preço perca força. A liminar estabelece que a Petrobras mantenha o fornecimento de gás, já que ela não demonstrou interesse em continuar atendendo a distribuidoras de gás do Nordeste — diz De Marchi.
Sem garantia de oferta
No Ceará, Hugo Figuerêdo, presidente da Cegás, distribuidora com 24 mil clientes e uma rede de 600 quilômetros de extensão na Região Metropolitana de Fortaleza, lembra que uma alta de quase 50% causaria enormes prejuízos para a economia, encarecendo os custos para os setores industrial, automotivo e comercial.
— Fizemos algumas chamadas públicas, mas nenhuma empresa conseguiu dar garantia firme de entrega de gás porque não tem acesso às redes de escoamento, processamento, transporte e regaseificação. E isso apesar de essas empresas privadas terem ofertado um gás mais barato que o da Petrobras — diz Figuerêdo.
No Rio e em São Paulo, a Naturgy (antiga CEG), com pouco mais de um milhão de clientes, já está com toda a documentação pronta para entrar hoje na Justiça, segundo fontes. A Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) também vai recorrer à Justiça, informou nesta segunda o colunista do GLOBO Ancelmo Gois.
Segundo uma fonte do mercado, a estratégia da Naturgy é entrar na Justiça por meio de CEG e CEG Rio. Essa decisão, porém, precisa ser aprovada por todos os integrantes do seu Conselho de Administração. Um dos conselheiros, no entanto, é indicado pela Petrobras, acionista da CEG Rio através de sua subsidiária Gaspetro.
Em nota, a Naturgy disse que a alta proposta pela Petrobras é de “custos não gerenciáveis pela Naturgy e, portanto, o aumento do preço não traz nenhum ganho para a distribuidora”. Hoje, a Agenersa, a agência reguladora do Rio, vai decidir se aprova ou não a alta de 50%.
Assim como ocorreu com a Cegás, na oferta pública da Naturgy a Petrobras foi a única com condições de garantir a entrega. Por isso, a distribuidora também recorreu ao Cade alegando abuso de poder econômico. A estimativa, dizem as empresas, é que 93% do preço do gás sejam referentes ao custo da molécula e impostos. Apenas 7% ficam com as distribuidoras de gás.
A Firjan, diz seu presidente em exercício, Luiz Césio Caetano, também entrou com representação no Cade para tentar segurar os repasses propostos pela estatal:
— Há preocupação, porque os contratos com a Petrobras são de longo prazo (de até quatro anos), e a economia do Rio não vai resistir com preços tão elevados. Produzimos mais da metade do gás e vamos ter o maior preço do país. É uma questão de monopólio.
‘Abertura malfeita’
Segundo Bruno Armbrust, sócio na ARM consultoria, o volume de liminares na Justiça é reflexo de uma abertura malfeita no mercado de gás. Segundo ele, a venda de ativos no setor deveria ter sido acompanhada de uma regulação no setor de transporte:
— O que estamos vendo é fruto de um processo de abertura malfeito e sem coordenação. Deveriam ter introduzido a obrigação de “usar ou ceder” a capacidade contratada de transporte. Os contratos de gás com as distribuidoras deveriam ser limitados a um ou dois anos.
A TAG, uma das maiores redes de gasodutos do país, que foi vendida pela Petrobras, assinou ontem 22 contratos com empresas como Equinor, Galp, Shell e PetroReconcavo, para que estas usem parte de sua infraestrutura no fornecimento de gás, sobretudo para as distribuidoras do Nordeste. Esses contratos correspondem a cerca de 20% do total das alocações de capacidade para 2022. O restante ainda é usado pela própria Petrobras.
Com isso, a Shell assinou contrato com a Bahiagás, distribuidora de gás natural da Bahia. E, no Rio Grande do Norte, a PetroReconcavo vai fornecer gás à distribuidora Potiguar, com redução de até 35% no preço da molécula.
Procurada, a Petrobras disse que não comenta decisões judiciais. O Globo