• Fernanda Montenegro e a carta recusando o cargo de ministra de Sarney

    Aquele telefonema numa noite de domingo caiu como uma bomba na casa de Fernanda Montenegro. O então ministro da Cultura, José Aparecido de Oliveira, ligou para convidar a grande atriz a substituí-lo na pasta, no início do governo de José Sarney, em maio de 1985. Vítima de censura e ameaça durante a ditadura militar que governara o país de 1964 até aquele ano, Fernanda tinha, então, a chance de ser a primeira mulher em um cargo de primeiro escalão do governo federal na Nova República (“A Velha República jamais pensaria em mim”, disse ela, numa entrevista).

    Foram dias de muita reflexão e conversa. A notícia sobre o convite se espalhou, e o telefone da casa da artista, no Jardim Botânico, na Zona Sul do Rio, não parou de tocar. Gente importante da cultura, como Millôr Fernandes, Barbara Heliodora e Luiz Carlos Barreto, além de um punhado de representantes de grupos feministas, ligavam para manifestar seu apoio. Todos queriam que Fernandona aceitasse.

    “É uma decisão difícil. Porque implica em largar o palco, e eu não sei se os deuses vão gostar disso”, disse ela ao GLOBO. “Por outro lado, à medida que as pessoas telefonam, insistindo para que aceite o cargo, a tentação aumenta. E eu, sem saber o que fazer. Preciso conversar com Ulysses Guimarães e Fernando Henrique Cardoso e avaliar que ressonância isso terá na minha própria classe”.

    Entre outras coisas, Fernanda temia assumir uma posição figurativa no governo, gerindo um ministério sem orçamento à altura da cultura brasileira.

    “Por mais criativo e competente que um ministro seja, não há como fazer cultura sem dinheiro. Cultura custa caro. As áreas econômicas precisam concordar para que um bom trabalho seja desenvolvido, ou teremos um ministério de sarau, esvaziado”, comentou Fernanda, acrescentando que a cultura deveria nascer do povo. “Nossa deformação cultural nos faz pensar que cabe a um segmento da sociedade levar cultura a outro. Nós temos é que buscar a cultura no povo, dando condições para que brote. Só assim torna-se possível criar uma real identidade cultural. Mas, para isso, é necessário investimento”.

    A atriz se isolou num sítio em Teresópolis, na Região Serrana do Rio, com o marido, Fernando Torres, durante dois dias. Ela pensou muito. Sua decisão, no dia 9 de maio, apesar de desagradar o presidente, foi uma declaração de amor ao ofício do teatro, declarado numa carta que a gente transcreve abaixo:

    “Querido amigo José parecido de Ollveira,

    Como cidadã sempre fiz do meu ofício um instrumento de participação política. Como artista fiz a minha participação política dentro do meu ofício, fora de flliação partidária, pois compreendo que o palco é, definitivamente, o espaço mais livre que o homem jamais criou. Se olharmos os palcos de um pais, saberemos exatamente que país é esse.

    Desde a adolescência venho, a princípio intuitivamente, mais tarde conscientemente, me expressando através dos mais variados textos, percorrendo, democratlcamente, os mais diversos gêneros teatrais, sem qualquer preconceito, na medida em que, para mim, um artista do palco tem que dar voz às mais diferentes manifestações da dramaturgia. Com isso, deixo claro que, no meu entender, o palco é o meu espaço também político.

    Comovida, feliz e honrada, vejo a lembranca do nome de uma atriz para o Ministério da Cultura como uma conquista histórica, culturalmente falando.

    Recentemente, artistas deste país foram convocados para um grande futuro e uma grande mudança. As oposições políticas armaram palanques, esses mesmos artistas, preparando o espetáculo, “esquentaram” as multidões nas praças, fortalecendo lideranças ainda não confiantes em si mesmas como comunicadores. Uma vez fortalecidas, essas lideranças políticas ocuparam o centro dos palanques. Os artistas, cumprida sua missão, recuaram. As massas humanas se impuseram. A partir daí, todos nós, irmanados, começamos a construção de um Brasil novo.

    Para aqueles que veem, preconceituosamente, a indicação de um artista para um tão alto cargo, respondo, sem exagero, que esse Brasil novo nasceu num palco armado na praça. Cogitar um artista para um Ministério é prova do amadurecimento político deste país, no seu todo. É um arejamento depois de tantos anos de asfixia. Pobre do pais cujo Governo despreza, hostiliza e fere seus artistas.

    Esse Brasil acabou.

    A sondagem que me foi feita, autorizada pelo presidente José Sarney, revela o gesto limpo, independente e original do homem que, dirigindo a Nação neste momento de tanta esperança, deposita sua confiança numa brasllelra entuslasmada e consciente.

    A esse convite devo responder com a mesma limpeza de propósitos. Vejo o Mlnistério da Cultura como o cerne do atual Governo. No meu entender, nenhum outro lhe é superior. Ele dará o tom da Nova República. E, para não ser assim, melhor seria não tê-lo criado, permita-me dizer-lhe com todo o respeito e confiança. A participação nessa esfera não pode ser exercida num quadro de nostalgia, de perda ou de degredo.

    Diante da sondagem que me foi feita, repasso minha vida e, feliz ou Infelizmente, compreendo que o meu amor profundo para com o exercício do Teatro ainda não foi esgotado. Ao contrário: está mais vivo do que nunca. Deixando agora o Teatro, a sensação que eu teria seria a de uma vida inacabada. Creio firmemente que cada cldadão deva exercer sua arte ou seu trabalho em conformidade com a sua vocação. Estaria sendo leviana se, pensando desse modo, agisse de outro.

    Não é fácil dizer não.

    Não vejo que seja mais fácil decidir pelo Teatro. Ou mais seguro. O Teatro nunca foi fácil ou seguro.

    Mas é esse o meu lugar.

    Tenho certeza de que todos os intelectuals, artistas e entidades de classe que me demonstraram apoio, através de cartas, telegramas, telefonemas e visitas, compreenderão a minha opção.

    Pode parecer uma frase bombástica e teatral, mas não devemos temer nem o Teatro nem as palavras; não estou preparaa para partir.

    Nesses novos tempos, gostaria que você, Aparecido, assim como o Presidente José Sarney, entendesse que a melhor maneira de prestar meus serviços à cultura brasileira é permanecer no palco, onde continuarei à disposição do meu pais, humildemente.

    De sua amiga, cujo sentimento básico é a fidelidade”

    Fernanda Montenegro

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