“Como ele é espirituoso!”. Esse foi, sem dúvida, o comentário mais compartilhado pela plateia de mais de 1.200 advogados após a palestra dada pelo ministro do STF Flávio Dino na Conferência Estadual da Advocacia, promovida pela OAB-ES.
Não sem razão. Em 40 minutos de ministração, Dino brincou com sua aparência, contou “causos”, falou de futebol, de vida conjugal e, para criar identificação com o público, não esqueceu de citar as praias capixabas e o mais ilustre filho da terra: o cantor Roberto Carlos.
Dono de uma oratória invejável e de um bom humor pouco visto em membros da magistratura, o ministro tratou com leveza, mas com muita propriedade, temas que estão em voga e representam um desafio para o direito.
“O STF e a proteção às famílias” foi o tema de sua palestra e o ministro dissertou, em ordem cronológica, todos os julgamentos em que o STF tratou sobre o tema e tomou decisões que impactaram toda a sociedade.
Começou em 2011, quando o STF admitiu as múltiplas formas de família, como a união entre pessoas do mesmo sexo; passou pelos julgamentos de ações de proteção às mulheres, como a que vedou a sustentação no plenário do júri da tese de legítima defesa da honra para casos de feminicídio; na área das licenças, citou o julgamento que equiparou a licença da mãe adotante à da mãe gestante; e na área de proteção às crianças, falou dos julgados que obrigam o Estado a garantir saúde e educação para os pequenos.
O ministro citou 12 julgamentos de repercussão, mas também citou a Bíblia ao debater sobre o conceito de família tradicional.
“Eu conheço uma história, de um cidadão casado com uma mulher, que se muda para outro lugar e o governante desse lugar se apaixona pela esposa dele. Ele empresta a esposa para o governante. O governante se arrepende e devolve a esposa. A esposa se descobre infértil e diz ao marido: ‘Eis aqui a minha amiga, eu não posso ter filho, mas ela pode’. O esposo tem filho com a amiga da esposa e depois volta para a esposa e tem filho com ela e, ao ter filho com ela, repudia a amiga da esposa. Vocês sabem onde está essa história? No Gênesis (1º livro da Bíblia). Abraão, Sara, Hagar, Ismael, Israel. A Bíblia, portanto, nos diz, em sua linguagem metafórica, que há múltiplas configurações, desde sempre, da estruturação das famílias”.
A defesa de uma família tradicional única, baseada no casamento apenas entre um homem e uma mulher, usando como base supostos conceitos bíblicos, é bastante utilizada por grupos de extrema-direita, principalmente contra ativistas LGBTQIA+. À medida que se aproxima o período eleitoral, então, os discursos se inflamam e viram promessas de campanha que, muitas vezes, servem apenas para camuflar preconceitos e discriminações.
Não à toa o ministro citou a Bíblia. Embora hoje esteja no STF, Flávio Dino teve uma longa carreira política, sendo deputado, senador, governador e ministro da Justiça. A maior parte desse período esteve filiado ao PCdoB, partido que é visto, por muitos adeptos do Conservadorismo, como inimigo da família e dos valores cristãos.
O ministro, porém, fez uma ponderação e aproveitou para dar uma alfinetada: “Ter múltiplas configurações de família significa que pode tudo? Alguém pode casar com uma samambaia? Nos dias de hoje, não faltará quem queira. Se tem gente que acha que a Terra é plana e que vacina faz mal, porque não terá quem queira casar com uma samambaia?”, questionou, sendo interrompido por aplausos da plateia.
“Aí o direito serve para dizer: ‘Olha, as pessoas podem se relacionar, mas há regras. O marido pode bater na mulher? Não. Pode fazer o que quiser com os filhos? Também não. Isso é perda da liberdade de expressão? Não. Isso é censura? Também não. Isso se chama direito. Nós vivemos disto”, afirmou o ministro, que também fez uma explanação sobre a liberdade como direito fundamental.
“Ninguém pode ir para uma rede social e, em nome de uma suposta liberdade, incitar um crime, fazer apologia à pedofilia, racismo. Não é possível que vivamos numa sociedade em que se multipliquem as formas de exploração sexual de crianças e adolescentes, de pornografia infantil, em que jovens são incentivados a se automutilarem e o direito não tem nada a ver com isso. Se não tivermos nada a ver com isso, para que servimos, afinal?”, questionou.
O questionamento veio em meio a uma crise entre o empresário Elon Musk, dono da rede social “X” (antigo Twitter), e o STF, principalmente contra o ministro Alexandre de Moraes. Antes da palestra, Dino deu uma coletiva de imprensa e citou o assunto, afirmando que o STF continuará a julgar as ações com independência e sem intimidação.
Veja abaixo outros trechos da palestra de Flávio Dino no ES:
ESCOLHA DO TEMA
“Eu escolhi falar sobre família porque acredito que em momentos de grande perplexidade, de grande conflituosidade, o que buscamos? Buscamos o porto seguro. E nós estamos vivenciando uma conjuntura histórica que há muitas incertezas, mudanças, impasses, conflitos presentes nas redes e ruas”.
FAMÍLIA TRADICIONAL
“A primeira premissa que gostaria de acertar: família tradicional é um conceito que, ao longo da história, assumiu múltiplas formas. Desde sempre, em todas as sociedades”.
“A Constituição de 1988 refletiu isso. A família entra no nosso sistema constitucional em 1934. De 1934 a 1967 a família era, em termos constitucionais, gerada exclusivamente pelo casamento. Depois, com a evolução dos costumes, as regras jurídicas acompanhando, chegamos à configuração constitucional atual em que nós temos a união estável e múltiplas formas de entidade familiar”.
MODERNO E CONSERVADOR
“O STF tem um monte de decisão inovadora, mas foi chamado para dizer se havia monogamia e disse que tem, é obrigatório. Era o caso de um cidadão que queria ter duas uniões estáveis ao mesmo tempo e o STF disse que não pode”.
“O que o STF fez em relação à família? Admitiu as múltiplas formas, protegeu o direito, protegeu os mais vulneráveis, mas, ao mesmo tempo, preservou a instituição. Precisamos de portos seguros na sociedade”.
ESSA TAL LIBERDADE
“Sou muito envolvido, hoje, com esse argumento da tutela às liberdades, porque de fato é um direito fundamental. Mas, nós do direito, sobretudo, não podemos cair no canto da sereia. É óbvio que a liberdade é um direito fundamental, porém é obvio que o direito fundamental à liberdade convive com outros direitos fundamentais. Há alguma heterodoxia nisto?”
EMBATE COM REDES SOCIAIS
“Crianças foram assassinadas em Blumenau. No contexto dessas ameaças aparecem no nosso laboratório cibernético 13 perfis com a foto e o nome de um homicida que havia assassinado crianças em Suzano. O que nós fizemos? Pedimos, gentilmente (às empresas): ‘Tire esses perfis do ar porque vocês estão fazendo apologia a um crime’. Resposta da empresa: ‘Não, não há apologia. Liberdade de expressão’. Precisamos entender que há outros direitos fundamentais, isso não é censura. E esse é um papel fundamental do direito”.
“Não há tema jurídico mais importante no mundo hoje. Cada vez mais as tecnologias estarão presentes dentro dos nossos lares, em nossas famílias. Vamos deixar isso sem regras? Acredito que não. Ser do século 21 não significa renunciar princípios e valores”. (Folha de Vitória)