Do site HuffPost – “Se ele puder ser candidato [em 2022], certamente esse é meu voto e continuarei falando que acredito que isso seria bom para o Brasil. Por simetria, compararia ao governo do [Nelson] Mandela, na África do Sul. Acho que ele cumpriria esse papel, depois de tantos traumas, fraturas, polarizações e divisões, acho que ele seria um governo de união nacional.”
A declaração é do governador do Maranhão, Flávio Dino, ao se referir ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e à possibilidade de tê-lo como candidato à Presidência da República em 2022.
Mandela liderou o movimento contra o apartheid, a segregação contra os negros. Depois de ser condenado à prisão perpétua em 1964, ele foi libertado em 1990, com um discurso que chamou a África do Sul para a pacificação. Em 1993, o país ganhou uma nova constituição. Em 1994, o líder foi eleito presidente e conseguiu aprovar inúmeras leis em favor dos negros.
De volta ao Brasil, Lula deixou na sexta-feira (8) a Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, onde ficou preso por 580 dias, desde abril de 2018. Sua soltura ocorreu na esteira da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) da última quinta-feira (7), quando houve maioria por aguardar o fim do trânsito em julgado para executar prisões — isto é, quando não há mais possibilidade de recursos. Lula foi condenado em 1ª e 2ª instâncias por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá e virou ficha suja, o que lhe impede de se candidatar novamente. O petista espera, no entanto, o julgamento da suspeição do então juiz Sergio Moro para que esse processo contra ele seja anulado.
A entrevista exclusiva do HuffPost com Flávio Dino ocorreu cinco horas antes do movimentado fim de tarde em Curitiba. O governador recebeu a reportagem no Palácio dos Leões, no centro histórico de São Luís, por quase uma hora.
Em diversos momentos, frisou a legitimidade e a força de Lula para unir novamente a esquerda. “É a pessoa credenciada para conduzir este novo momento da esquerda no País”, sentenciou o governador, aliado histórico do ex-presidente, que agradeceu, no discurso à militância logo após deixar a carceragem da PF, ao PCdoB de Dino, entre outros apoiadores.
Flávio Dino também criticou o governo de Jair Bolsonaro, chamou sua gestão de “atrapalhada” e criticou a postura “beligerante” do presidente e a falta de contato com governadores. Destacou que não só ele, mas nenhum colega de governo estadual foi ouvido na elaboração da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) de Pacto Federativo, apresentado pela equipe econômica ao Congresso na semana passada. A proposta muda a configuração do Estado e busca alterar a composição dos municípios brasileiros.
Dino também lamentou a nova posição diplomática do Brasil e a existência de um “pequeno” núcleo antidemocrático orbitando o Palácio do Planalto. Fez diversas análises do cenário político e jurídico atual com base na História do Brasil e do mundo.
Leia alguns trechos da entrevista:
HuffPost: O senhor é um dos governadores mais atuantes do Nordeste e da esquerda atualmente. Por outro lado, temos visto no País uma ascensão do conservadorismo e da direita. Qual o senhor acha que é o papel da esquerda neste momento?
Flávio Dino: Em primeiro lugar, um papel de resistência, que temos exercido. Resistência contra retrocessos sociais e econômicos. Em segundo lugar, apresentação de propostas que mostrem caminhos diferentes desse que está sendo adotado pelo governo federal. Acho que temos exercido bem ambos os papéis. Há uma visão muito crítica acerca do que a oposição tem feito, mas eu não me alinho entre aqueles que acham que a oposição ao bolsonarismo tem mais errado que acertado. Basta ver que, na reforma da Previdência, por exemplo, uma série de tragédias profundas foi evitada por mérito da oposição. E temos apresentado ideias, propostas. Agora mesmo apresentamos a nossa proposta de reforma tributária, justa, solidária e sustentável, como chamamos. Nascida com a reflexão do governo sindical e com acordo dos governadores do Nordeste. Mas temos desafios novos à frente: as eleições municipais no ano que vem. Acho que vai ser inevitavelmente uma espécie de plebiscito em relação ao Bolsonaro. Acho que os resultados serão bons para nós.
O que aconteceu fruto das Jornadas de Junho de 2013 e da Operação Lava Jato foi a quebra do modelo PT-PSDB, e isso levou a uma ultrafragmentação do quadro político no Brasil. Então, a crise não é da esquerda. A crise é da política institucional, da extrema direita à esquerda.
O senhor acredita que a esquerda rachou em 2018 e precisa se reunificar?
As divisões fazem parte da vida. Se olhar o campo ideológico oposto ao nosso, da direita, neste momento está mais conflagrado que o nosso. Pessoal olha muito divisões no nosso campo, que eu lamento, às vezes polêmicas acirradas, mas elas não são exclusivas nossas. Se olhar, por exemplo, como está a situação no principal partido do bolsonarismo [PSL], o cenário de guerra de todos contra todos.. Vivemos, na verdade, uma desinstitucionalização, uma desestruturação da política do Brasil, fruto do fim da Nova República. Quer dizer, o paradigma da Nova República, ou seja, o grande impacto construído entre 1979 e 85, entre as greves do ABC e o colégio eleitoral, se construiu um paradigma, um modelo de organização política no Brasil. E esse modelo possibilitou a campanha das diretas, a vitória do presidente Tancredo Neves, uma nova Constituição, e a primeira eleição presidencial de 89.
De lá pra cá se assentou um desenho do quadro partidário. Duas grandes forças, PT e PSDB, que protagonizaram praticamente todas as eleições presidenciais desde então, com exceção de 89, quando foi Lula e Collor, e de 2018, quando foi Haddad e Bolsonaro, todas as demais seis eleições presidenciais que houve no meio do caminho foram protagonizadas por essas duas forças partidárias. E você tinha mais ou menos um desenho, um PMDB forte, e tal. O que aconteceu, fruto daquela jornada de junho de 2013, por um lado, mas sobretudo pela Operação Lava Jato, foi a quebra desse modelo, e isso levou a uma ultrafragmentação do quadro político no Brasil. Então, a crise não é da esquerda. A crise é da política institucional, da extrema direita à esquerda.
Então, portanto, se você pergunta se houve uma espécie de fratura, de quebra, eu te diria que sim. Mas não da esquerda apenas. O que sobrou do PSDB? Teve um desempenho muito pequeno [em 2018]. Estamos falando de um dos maiores partidos brasileiros em décadas. Partido fundamental na vida brasileira nos últimos 30 anos praticamente. Então, é um desafio acho que para todo o sistema político, abrangendo, óbvio, a esquerda. Estamos, sim, diante desse desafio e de uma real reorganização política. Um novo programa, uma certa transição e uma tentativa de reconstruir a política no Brasil…
É necessário colar pedaços no nosso campo [a esquerda], e temos alguns segmentos poderosos para fazer essa colagem. Acho que dois são imprescindíveis. Um é o debate programático, a visão prospectiva sobre o Brasil. E a outra é a coordenação disto.
A vitória do Bolsonaro é causa de muitos problemas, mas sobretudo é sintoma de muitos problemas, essa crise de representação, de legitimação do sistema institucional… Isso é mais ou menos clássico na literatura política. Operação Mãos Limpas, na Itália, conduziu ao [Silvio] Berlusconi. Eu dizia isto o tempo todo: resta saber quem vai ser o nosso Berlusconi. E acabou sendo o Bolsonaro. A desinstitucionalização da política, no mundo, nos anos 20 e 30, pós Primeira Guerra, conduziu a Hitler e [Benito] Mussolini e à Segunda Guerra. Então isso é mais ou menos um manual. Você conhece um pouco teoria política, ciência, História, você sabe que essas crises institucionais agudas como a que o Brasil viveu e vive em certo sentido conduzem a esse tipo de radicalização, polarização, sectarização, extremismo, belicismo, todos esses “ismos” que estamos vendo e que a gente sintetiza em uma palavra só chamada “fascismo”.
Portanto, respondendo objetivamente: é necessário colar pedaços no nosso campo e temos alguns segmentos poderosos para fazer essa colagem. Acho que dois são imprescindíveis. Um é o debate programático, a visão prospectiva sobre o Brasil. E a outra é a coordenação disto. Felizmente estamos recuperando o único líder legitimado a conduzir essa colagem, que é o Lula. E isso aponta para uma retomada, para um salto de qualidade, porque pela sua autoridade única e experiência única é a pessoa credenciada para conduzir este novo momento da esquerda no País.
Pois é, o senhor falou no Lula… Como o senhor viu a decisão do STF sobre a segunda instância?
O Supremo julgou nos termos do que está escrito na Constituição e no Código de Processo Penal. A Constituição prevê, e foi uma opção do constituinte consciente, em razão da superação da ditadura militar. É importante entender que a nossa Constituição, assim como as Constituições europeias da Itália, da França, da Alemanha pós Segunda Guerra, ou a Constituição portuguesa de 1976 pós-Salazar, a espanhola, de 1978, pós Francisco Franco, são constituições construídas sobre uma base histórica em busca de uma superação de uma herança ditatorial. Em todos esses paradigmas históricos, há preocupação com a proteção do cidadão, porque são constituições de transição de regimes ditatoriais. 88, no Brasil, a mesma coisa. Havia uma preocupação toda especial com a proteção dos direitos individuais sociais contra uma perspectiva autoritária.
E é nesse contexto que é feita a opção pela presunção de inocência ou de não culpabilidade até o trânsito em julgado. Ou seja, foi uma opção consciente que tinha uma razão de ser histórica, que era dar uma proteção master ao cidadão perante eventuais atos arbitrários de agentes estatais. Isso depois foi corroborado no Código de Processo Penal expressamente; o artigo 283 é taxativo ao dizer como uma pessoa pode ser presa, em flagrante, em prisão preventiva ou temporária. Se tiver atrapalhando uma investigação, ameaçando uma testemunha, destruindo uma prova, pode ser presa antes do curso do processo do inquérito, e a prisão em face do trânsito em julgado. Ou seja, não existe no sistema jurídico brasileiro, nem na Constituição, nem no Código de Processo Penal essa invenção de execução provisória de sentença. Não está escrito em canto nenhum.
É absolutamente falso, falacioso, dizer que o trânsito em julgado vai implicar que o serial killer vai ficar solto. Só se quiserem. Quem? Se os juízes quiserem.
Vivemos em um sistema, no caso brasileiro e da maioria dos países do Ocidente, em que temos o primado do princípio da legalidade, ou seja, o juiz é aplicador da lei. Claro que ele interpreta, mas não é uma interpretação livre. É uma interpretação dentro de um trilho, e esse trilho é definido pela Constituição e pelas leis. Então, a chamada execução provisória que inventaram, no caso do ex-presidente Lula e outras tantas, ela não se insere nesse trilho.
Você pode construir outro trilho? Claro. Mas não um juiz ou mesmo um conjunto de juízes. Só quem pode construir um outro trilho é o Congresso Nacional. E foi isso que o Supremo decidiu. Ou seja, a Constituição e o Código de Processo Penal estão valendo. Ótimo. Decisão acertada do Supremo.
Há uma visão dos que se opõem a isso segundo a qual isso conduziria à impunidade. Os fatores de impunidade são diversos. Não é em razão de haver ou não trânsito em julgado que você aumenta a impunidade. Até porque, em casos mais graves, como crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, é óbvio que neste caso, não precisa aguardar o trânsito em julgado exatamente porque existe a prisão preventiva. O sistema jurídico tem remédios que impedem que essa pessoa fique solta no curso do processo.
Então é absolutamente falso, falacioso, dizer que o trânsito em julgado vai implicar que o serial killer vai ficar solto. Só se quiserem. Quem? Se os juízes quiserem. Os agentes que decidem se um caso se enquadra ou não na prisão preventiva e temporária são juízes. Então, não é questão que caiba ao sistema político. E sim nestes casos em que obviamente, aí sim, o réu ficando solto oferece ameaça à sociedade, o mesmo Código de Processo Penal dá os instrumentos de você evitar…
Vamos imaginar o crime chamado de colarinho branco. O cidadão está ameaçando uma testemunha. Vamos imaginar um porteiro sumido, ou alguém destruindo um documento, o cidadão foi lá na Suíça, lá no banco, para apagar. Ele não só pode, como deve ser preso. Isso chama prisão preventiva, está na lei. É absolutamente falacioso esse argumento segundo o qual a decisão do Supremo vai conduzir a uma espécie de ‘liberou geral’. Depende do juiz. Eu espero que não conduza ao ‘liberou geral’.
O senhor se referiu ao ex-presidente Lula como um líder maior da esquerda. A esquerda ainda não conseguiu criar um outro nome para substituí-lo. Por que o ex-presidente é essa figura que aglutinaria todos?
Porque ele é uma figura realmente especial. A História dos povos é feita assim. Se eu te fizesse um desafio agora de me dar o nome de cinco presidentes dos Estados Unidos, você lembraria de cinco. Mas se eu te pedisse 20, você não lembraria, nem eu ia lembrar. Mas nós lembraríamos de cinco, do Obama, do Lincoln, do Roosevelt etc, porque são figuras marcantes. Se você me pedisse o nome de 20 presidentes ou primeiros-ministros franceses, eu não saberia. Mas se me dissesse para falar três…
A História dos povos é feita assim. Em todas as nações, têm líderes que sobressaem. Não é uma característica brasileira. Nem é um mal. Acho que é um privilégio do Brasil ter um líder preparado, com a história de vida, com a experiência e com a projeção mundial que o ex-presidente Lula tem. Acho isso um patrimônio brasileiro. Assim como acho muito importante que nós tenhamos tido Juscelino Kubitschek lá atrás. Então, não é uma anomalia da esquerda. Agora, é claro que o presidente Lula não é eterno e você tem que passar por um processo de renovação de quadros. Mas volto ao mesmo argumento, no sentido de que isso não é um ponto de interrogação específico para a esquerda.
Também essa dificuldade de formação de quadros está em todos os campos políticos. Tanto que Bolsonaro é o presidente da República, temos sempre que lembrar disso [risos]. Então essa é a prova digamos cabal e definitiva de que nós temos um problema de formação de quadros políticos. Espero que essa renovação, credenciamento de lideranças, ocorra na esquerda, mas ocorra no País de modo geral, também na direita. Acho que a direita pode ter líderes melhores…
Governador, Lula 2022?
Se ele puder ser candidato, certamente esse é meu voto e continuarei falando que acredito que isso seria bom para o Brasil. Acredito que ele faria um governo de união nacional, uma espécie de… [pensa] Por simetria, claro que é uma analogia, não é exata, mas compararia ao governo do Mandela, na África do Sul. Acho que ele cumpriria esse papel, depois de tantos traumas, fraturas, polarizações e divisões, acho que ele seria um governo de união nacional. Isso se ele puder novamente ser candidato, é o meu candidato. Estarei fazendo campanha com muita determinação, terá meu voto, sendo governador ou não, é meu voto pessoal. E espero que ele possa se candidatar.
No início do ano, o presidente Jair Bolsonaro se referiu ao senhor como “paraíba”. Ficou ressentimento?
Não, porque considerei uma honraria duplamente. Primeiro porque eu tenho orgulho do Nordeste. Segundo porque ele me considerar o pior governador, para mim, é um diploma de honra ao mérito. Porque de fato nós somos diferentes. Eu ficaria preocupado se ele dissesse que eu sou igual a ele, que ele me acha o melhor governador. Aí eu ficaria preocupado. De fato acreditamos em coisas não só diferentes, antagônicas. O modelo de sociedade em que ele acredita é totalmente diferente do modelo de sociedade no qual eu acredito. Então eu considerei um elogio.
Chamar os governadores, o governo Bolsonaro nunca chamou. Nunca! Estamos completando um ano de governo. Uma reunião geral de governadores, com a presença do presidente e da equipe, nunca.
O senhor tem notado alguma diferença no tratamento dado pelo Executivo ao Maranhão pelo fato de o senhor ser de esquerda, do PCdoB, que é um partido tachado pelo presidente como comunista e rival?
Objetivamente não por uma razão: esse afastamento dele [Bolsonaro] se dá em relação a todos os governadores. Pode ter um ou outro, porque sempre toda regra tem exceção. De um modo geral, o que notamos é que há um afastamento em relação a tudo e a todos. Houve isso em relação à reforma da Previdência. Nós somos governadores, e só após a apresentação da proposta ao Congresso é que houve uma apresentação da proposta a nós. E isso porque dizia respeito diretamente a questões que impactavam estados e municípios.
Agora nesse pacote econômico lançado nesta semana, absolutamente ninguém foi ouvido, ninguém foi consultado, não houve uma reunião de governadores prévia ou posterior para apresentação deste conjunto de ideias. Então eu não posso me considerar discriminado, porque na verdade eu teria que me inserir num conjunto de discriminados. Uma questão grave como essa, um pacote para reconstruir o Estado, um novo pacto federativo, quer dizer uma coisa realmente inusitada. Querem reconstruir um pacto federativo em que os entes federados não são ouvidos, nem estados nem municípios.
Em razão desse insulamento, desse isolacionismo e belicismo que o governo federal pratica permanentemente, eu não me considero discriminado. De fato é, o padrão de relacionamento. É essa a distância e vamos seguindo a vida e ver o que se permite.
Questões orçamentárias também não foram afetadas?
Não, porque na verdade as políticas já pactuadas estão sendo executadas no governo do estado. Convênios que já tínhamos das épocas do [Michel] Temer, da Dilma [Rousseff], do próprio Lula. Coisas mais longas, obras. Essas continuam, nunca houve paralisação. Por exemplo: eu tenho uma operação de crédito com o Banco do Brasil, por hipótese, com o BNDES, e isso continua. Todos os atos jurídicos feitos anteriormente têm sido respeitados. O que não há são novos. Mas também não há praticamente com ninguém [outro estado].