• Líderes da Câmara descumprem decisão de Flávio Dino e fazem ‘indicação coletiva’ de emendas

    Na última quinta-feira (12), um grupo de 17 líderes de bancadas da Câmara dos Deputados enviou aos ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Secretaria de Relações Institucionais) um ofício no qual “apadrinham” R$ 4,2 bilhões em indicações de emendas de comissão. No documento, que é sigiloso, os líderes explicam que assumem a autoria das indicações como forma de cumprir a determinação de 02 de dezembro do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), que liberou a execução das emendas; e a portaria publicada pelo governo Lula na última terça (10). Entidades consultadas pelo Estadão, no entanto, consideram que o ofício viola a decisão do STF.

    O documento é assinado pelos líderes das bancadas do PSDB, Adolfo Viana (BA); do PSD, Antônio Brito (BA); do PDT, Afonso Motta (RS); do Cidadania, Alex Manente (SP); do PL, Altineu Côrtes; do Solidariedade, Áureo Ribeiro (RJ); do PP, Dr. Luizinho (RJ); do União Brasil, Elmar Nascimento (BA); do PRD, Fred Costa (MG); do PSB, Gervásio Maia (PB); do Republicanos, Hugo Motta (PB); do MDB, Isnaldo Bulhões (AL); do PV, Luciano Amaral (AL); do Avante, Luís Tibé (MG); do Podemos, Romero Rodrigues (PB); e do PT, Odair Cunha (MG). O líder do governo, José Guimarães (PT-CE), também assina.

    Até esta terça-feira (17), o governo já tinha empenhado (ou seja, reservado para pagamento) R$ 10,1 bilhões em emendas de comissão, de um total de R$ 15,5 bilhões apresentados ao Orçamento deste ano. Ou seja, ainda faltavam empenhar R$ 5,4 bilhões. Se o dinheiro não for empenhado até a 0h do dia 1º de janeiro de 2025, as emendas são perdidas e o montante passa a contar para o atendimento da meta de superávit primário.

    No pé de cada página, o documento traz um QR Code que permite verificar sua autenticidade e a validade das assinaturas dos líderes. O ofício está registrado sob o número “14335458/2024″ e tem como origem a “SGM.UT”, a Secretaria-Geral da Mesa, comandada pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O arquivo acompanha uma planilha com as indicações de emendas dos líderes, detalhando o valor, a rubrica orçamentária, o município beneficiado e o órgão executor, entre outras informações.

    Parte das indicações “apadrinhadas” em conjunto pelos líderes no ofício é de emendas de comissão já apresentadas ao Orçamento de 2024. Um exemplo é a emenda de número 50410002, da Comissão de Saúde, destinada ao Fundo Municipal de Saúde de São Paulo (SP), no valor de R$ 200 mil. Neste caso, o ofício informa que os líderes decidiram pela “ratificação de indicação já encaminhada”. Ou seja, ao invés de um deputado da Comissão de Saúde assumir a autoria da indicação, são os líderes dos 17 partidos que se apresentam como “padrinhos”. Há também inclusão de novas indicações no ofício. O documento foi revelado pela “revista Piauí”.

    O documento assinado pelos líderes parece destoar daquilo que foi determinado por Flávio Dino ao liberar a execução das emendas, em 2 de agosto. Na ocasião, Dino deixou claro que a execução das emendas de comissão estava liberada, desde que “todos os registros estejam no Portal da Transparência e no Transferegov (site de gestão do governo), inclusive a identificação nominal do(s) parlamentar(es) ‘solicitante(s)’, vedada a substituição pelo presidente da Comissão”.

    Em outro trecho da decisão, Dino afasta a possibilidade da criação das “emendas de líder partidário”.

    “Não há qualquer óbice a que os líderes partidários sugiram emendas às comissões da Câmara e do Senado. No entanto, não há fundamento constitucional para que detenham monopólio na indicação. (…). É um imperativo constitucional que qualquer parlamentar membro da comissão seja reconhecido como autêntico legitimado para indicar emendas (…). Constituiria uma incompatibilidade constitucional e semântica que a ‘emenda de comissão’ fosse transformada em ‘emenda de líder partidário’”, escreveu Dino.

    Na portaria publicada na última terça–feira (10) para disciplinar o pagamento das emendas, o governo foi vago. “Quanto às programações classificadas como RP 8 (emendas de comissão), considera-se como solicitante qualquer parlamentar que assim se identifique, inclusive os líderes partidários”, diz um trecho do documento. A portaria não especifica se cada líder pode assumir as indicações de sua bancada, ou se o apadrinhamento pode ser feito em bloco, como no ofício.

    Para entidades que atuam no tema da transparência das verbas públicas, o ofício dos líderes partidários contraria a decisão de Dino.

    “É uma manobra para driblar a decisão de Dino, fingindo que estão cumprindo. Quem acompanha (a execução do Orçamento) sabe que os líderes não são, necessariamente, os verdadeiros autores das indicações. E ainda por cima, fizeram esse ofício de forma sigilosa”, diz Marina Atoji, que é diretora da Transparência Brasil.

    Para Atoji, o ofício “demonstra como a Câmara dos Deputados está resistente a cumprir as determinações (do STF) e a própria Constituição (…), demonstrando claramente que não estão dispostos a abrir mão desse ‘direito adquirido’ que foram conquistando ao longo desses anos, de mexer no Orçamento”.

    “Organizando agora um verdadeiro motim de líderes partidários para afrontar a decisão do STF, Lira parece querer mostrar ao país que ninguém será capaz de impedir seu assalto ao orçamento. É fundamental que as instituições reafirmem sua autoridade e o submetam à lei, inclusive responsabilizando-o por sua desobediência reincidente às decisões judiciais”, diz Bruno Brandão, que é diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil.

    Suspensão de Dino buscava interromper orçamento secreto
    Revelada pelo Estadão em 2021, a prática do orçamento secreto consistia no uso das chamadas “emendas de relator” para criar novas despesas e destinar verbas para as cidades onde os congressistas têm votos. Identificadas pelo código “RP-9″, as emendas de relator eram usadas assinadas apenas pelo relator-geral do Orçamento do ano, omitindo os nomes dos verdadeiros autores das indicações. Em dezembro de 2022, a prática foi considerada inconstitucional pelo STF.

    Ao longo do ano de 2023, a função que antes era exercida pelas emendas de relator passou a ser ocupada pelas emendas de comissão. O valor dessas emendas, identificadas pelo código “RP-8″ cresceu 85% de 2022 para 2023, chegando a R$ 7,6 bilhões. A “substituição” das emendas de relator pelas emendas de comissão foi constatada pela Controladoria-Geral da União (CGU), em relatório encaminhado a Dino. O mecanismo contribuiu para enfraquecer a entrega de políticas públicas efetivas para a sociedade, diz o levantamento.

    No dia 1º de agosto deste ano, Dino constatou que a decisão de dezembro de 2022 do STF não estava sendo cumprida adequadamente e convocou representantes do Legislativo, do Executivo e do Ministério Público para uma reunião. “Não basta mudar o número (do marcador no Orçamento) para mudar a essência. Se não é possível uma execução privada de recursos públicos com opacidade sob a modalidade de RP-9, do mesmo modo isto é vedado sob qualquer outra classificação”, disse ele, na ocasião.

    Pouco depois, em meados de agosto, Dino suspendeu a execução das emendas e determinou uma série de auditorias para verificar como o dinheiro estava sendo gasto. Em novembro, a Câmara aprovou um projeto de lei complementar para tentar dar mais transparência às emendas – o que não ocorreu, segundo entidades que acompanham o assunto.

    Finalmente, no começo deste mês, Dino liberou a execução das emendas – mas reiterou exigências que buscam dar um mínimo de transparência ao processo, como a necessidade de identificar nominalmente os “padrinhos” de emendas de comissão e dos chamados “restos a pagar” das emendas de relator. O governo Lula, por meio da Advocacia-Geral da União, pediu que Dino flexibilizasse as exigências, mas ele negou os pedidos.

    40% do valor para reduto de Lira

    Um ofício enviado pela Câmara na quinta-feira passada ao governo mudou a destinação de parte das emendas de comissões previstas para serem liberadas nesta reta final do ano. O documento leva a assinatura de 17 líderes de partidos e pede a execução de R$ 4,2 bilhões que já estavam previstos no Orçamento de 2024, mas estavam bloqueados desde uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de agosto.

    Deste valor, porém, R$ 180 milhões são referentes a “novas indicações”, sendo que 40% (R$ 73 milhões) são direcionados ao Estado de Alagoas, reduto eleitoral do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). De acordo com dois dos líderes ouvidos pela reportagem, a assinatura do documento se deu após pedido do deputado alagoano. O ofício, que inclui a tabela com mudanças no destino das emendas, foi revelado pela revista piauí e confirmado pelo GLOBO.

    Após receber o ofício, a Secretaria de Assuntos Jurídicos da Presidência da República (SAJ) deu respaldo jurídico ao pleito da Câmara. No parecer, a SAJ concluiu que não há irregularidades ou inconstitucionalidades no ofício da Casa.
    Procurado, o presidente da Câmara disse que não comentaria. Também questionada, a Secretaria de Relações Institucionais, pasta para a qual o ofício foi encaminhado, informou que “todas as comunicações” sobre a liberação de emendas são remetidas aos respectivos ministérios responsáveis por executar os recursos. “Cabe destacar que a execução tem ocorrido em absoluto respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal”, afirma o ministério, por meio de nota.

    O documento com a assinatura dos líderes foi enviado pela Câmara no mesmo dia em que Lira determinou a suspensão de reuniões das comissões da Casa com o argumento de dar celeridade às tramitações das pautas econômicas no plenário. Assim, segundo presidentes dos colegiados, as novas indicações não passaram pelo referendo dos grupos.

    A ação, de acordo com esses parlamentares, fere regras aprovadas pelo Congresso no mês passado para dar mais transparência à execução das emendas, fruto de acordo com o ministro Flávio Dino, do STF. O texto da lei prevê que líderes de bancadas apresentem propostas sobre como os recursos das comissões devem ser distribuídos. Essas indicações, contudo, devem ser aprovadas pelos colegiados em até 15 dias, o que não ocorreu.

    A situação irritou o presidente da Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara, deputado José Rocha (União-BA). Ele afirmou ter recebido as indicações das emendas assinadas pelos líderes diretamente do gabinete de Lira, mas decidiu segurar o processo e não convocar uma reunião para aprovar os novos valores quando, segundo ele, percebeu que favoreciam mais Alagoas.

    — Eu segurei. Uma semana depois a funcionária dele me liga pedindo para liberar, não liberei. Uma semana depois, ela liga de novo, não liberei. Aí, ele me liga e vem com o tom de ameaça, dizendo que eu estava criando problema. Foi a última conversa que eu tive com ele. Depois disso ele [Lira] suspendeu as comissões — disse Rocha.

    Segundo o deputado do União, seriam mais de R$ 300 milhões para Alagoas em um total de R$ 1,1 bilhão ao qual seu colegiado teria o direito.

    Presidente da Comissão de Legislação Participativa, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) disse ao GLOBO que irá com um mandado de segurança junto ao STF para que os pagamentos não sejam liberados.

    — Não fui procurado sobre essa decisão — disse o deputado.

    Procurado para saber se tomaria alguma medida, o ministro Flávio Dino, relator no Supremo Tribunal Federal (STF) de uma ação que questiona o formato das emendas de comissão, não comentou.

    Como o GLOBO mostrou, a retomada das liberações de emendas parlamentares pelo governo, na semana passada, não deve pôr fim ao impasse relacionado ao pagamento dos recursos. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já aguardavam ser novamente provocados sobre eventuais descumprimentos das regras estabelecidas para que a verba seja enviada a prefeituras e governos estaduais.

    Para que haja um novo bloqueio, no entanto, a Corte esperava ser provocada por algum “agente externo”, como um partido, como fez o PSOL no requerimento que deu início às ações do STF.

    Segundo a diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, o formato adotado pela Câmara para mudar as indicações via documento assinado por líderes partidários se assemelha ao modelo adotado no “orçamento secreto”. Pelo mecanismo, deputados e senadores destinavam recursos a suas bases eleitorais sem serem identificados. Todas os repasses eram atribuídos ao relator do Orçamento.

    — Os líderes assumem a autoria de emendas que obviamente não foram todas apresentadas por todos eles. Basicamente, uma versão piorada do orçamento secreto. Isso contraria a ordem do STF de que seja identificado o parlamentar que indicou cada emenda de comissão e esconde essa informação por trás de muitos nomes em vez de um só — disse Atoji. — Sem contar que esse ofício foi elaborado sem passar pelas comissões que originaram as emendas, o que é uma subversão do processo legislativo — completou ela.

    Para a SAJ, porém, o documento é legal justamente porque é assinado por “parlamentares se identificaram como solicitantes das respectivas emendas”.

    No parecer do órgão, há ainda a outra justificativa. A pasta alega que a exigência de aprovação de emendas por comissões, com registros em atas, “só devem valer para 2025”. (O Globo e Estadão)

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