• Vírus do caudilhismo mancha legado positivo dos anos Evo

    Primeiro indígena eleito presidente da Bolívia, Evo Morales foi um dos líderes mais importantes da história do país mais pobre da América do Sul. Mas, como tantos outros líderes da região, caiu no canto da sereia do caudilhismo, minando o Estado de Direito para se perpetuar no poder.

    Quando Evo assumiu, no distante ano de 2006, a Bolívia atravessava mais um ciclo de instabilidade política e convulsão social, simbolizada pelos protestos que levaram à renúncia do presidente conservador Gonzalo Sánchez de Lozada, o “Gringo”, em 2003.

    Representante boliviano da “onda vermelha” latino-americana, o ex-líder cocaleiro priorizou, no primeiro momento, a nacionalização do gás natural, principal produto da economia boliviana. Ajudado pela a condescendência do presidente Lula, arrancou acordos que asseguraram um aumento expressivo da arrecadação e o boom econômico dos anos seguintes.

    Ao contrário do aliado Hugo Chávez, Evo soube administrar a renda dos hidrocarbonetos. De 2006 até o ano passado, o PIB da Bolívia cresceu, em média, 4,9% ao ano. Para 2019, a projeção do FMI é de 4%. Poucos países do mundo ostentam resultado semelhante nesse período.

    Além do fator econômico, a nacionalização do gás teve um grande valor simbólico em um país onde, desde a exploração da prata nos tempos coloniais, os recursos naturais exortados beneficiavam apenas a elite branca local.

    Ao contrário da Venezuela, o governo boliviano conseguiu reduzir a pobreza no país para a metade, de 63% para 35% em 13 anos de governo, segundo cálculo do Banco Mundial.

    De quebra, expulsou do país empresas estrangeiras que agiam para corromper o Estado. Foi o caso da siderúrgica brasileira EBX, do empresário Eike Batista, ainda em 2006, muito antes dos escândalos que provocaram a sua bancarrota e prisão.

    Não foi só na economia que a Bolívia de Evo surpreendeu. Visto com desconfiança por seu passado como produtor de coca, o ex-mandatário dispensou centenas de milhões de dólares de ajuda norte-americana, expulsou a DEA (agência antidrogas dos EUA) e assumiu o combate à cocaína.

    À época, muitos previram que a Bolívia poderia voltar ao caos dos anos 1980, quando o ditador Luis García Meza estava envolvido diretamente com o narcotráfico. O resultado, no entanto, foi o oposto, e hoje La Paz tem se mostrado mais eficiente no controle do que a Colômbia e o Peru, os principais produtores de cocaína, apesar da ajuda de Washington.

    Todo esse legado, no entanto, foi colocado em risco com a insistência de permanecer no poder, seguindo o caminho de  Chávez, Alberto Fujimori e outros que rasgaram as mesmas regras democráticas que os alçaram ao poder.

    O auge desse atropelo foi ter ignorado o resultado do referendo de 2016, em que a população boliviana foi às urnas para dizer a Evo que não queria que ele tentasse um quarto mandato consecutivo.

    Sem o respaldo da consulta, a sua candidatura neste ano só foi possível graças à ingerência governista na Suprema Corte e no Tribunal Supremo Eleitoral (TSE). De árbitro, o Judiciário boliviano passou a ser braço auxiliar de Evo. As ruas, nos últimos dias, deixaram claro que a estratégia não colou.

    Ao pedir a renúncia após pressão das Forças Armadas, Evo ressuscitou, involuntariamente, outro fantasma latino-americano, a interferência militar na política, de novo arvorando-se de árbitro da política.

    Dono de considerável capital político e ainda com 60 anos, o agora ex-mandatário boliviano continuará tendo papel importante nos rumos do país. Resta saber se fará uma autocrítica sincera sobre a sua opção autoritária ou se continuará buscando o poder, custe o que custar. Por Fabiano Maisonnave

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