Constantemente volta à baila a frase de Margaret Thatcher segundo a qual não existe “sociedade”, apenas “indivíduos”. Ela foi dita na aurora do neoliberalismo, etapa do capitalismo que não deve ser vista apenas como uma política econômica, mas como a construção, no nível da cultura ou da ideologia, de um outro tipo de relação do indivíduo com a sociedade. É a apologia do cidadão fraturado e fragmentado, instado a encarar os outros como concorrentes a derrotar.
Esse é um território hostil à esquerda, portadora da boa-nova de que é necessário negar as iniquidades deste mundo, construindo um novo. Na luta entre comunidade e arrivismo individual, solidariedade e egoísmo, gregarismo e homo economicus, a esquerda precisa encontrar pensamentos análogos aos seus, identificando em que repositórios de cultura estão sentimentos que podem levar a Humanidade a se imaginar como um projeto coletivo. O sentimento religioso é gregário, porque a ligação com o sagrado pressupõe uma dimensão comunitária. A beleza dos ritos religiosos, que tocam o coração de crentes e não crentes, está em sua dimensão coletiva, na vivência de uma comunhão de que necessitamos, mas que o individualismo selvagem nos arrancou. No sentimento religioso também está depositada a ideia de que há alternativa, há um reino no qual todos desejamos viver. A existência de líderes religiosos inescrupulosos, que espalham ódios, é indiscutível e deplorável. Porém há a imensa maioria de líderes probos e justos, em todas as religiões.
Assim, não há o menor sentido filosófico ou político na suposta contradição entre esquerda e religião. Nem mesmo sentido teológico existe, bastando lembrar o livro religioso mais lido no mundo, a Bíblia. Entre tantas lições poderosas de prevalência da justiça social, está escrito no Livro do Êxodo (16:18): “Aconteceu que o que tinha ajuntado muito não tinha demais e, ao que tinha ajuntado pouco, não lhe faltava: cada um havia recolhido segundo a sua necessidade”. E no Livro dos Atos dos Apóstolos (4:32): “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum”.
Todos sabemos que, em outras épocas e em outros contextos históricos, ocorreram incompreensões, interdições a diálogos entre eventuais pontos de vista divergentes, até mesmo indevidas e lamentáveis retaliações. Mas estamos no Brasil, num momento de dramáticas dificuldades sociais, e precisamos de união em favor dos mais pobres. O afastamento entre esquerda e religião só interessa a uma pequena fração da sociedade, que cultua o individualismo e o império do dinheiro, da cobiça, da acumulação desvairada de bens materiais por poucos. Invocamos novamente o texto bíblico: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lucas, 16:13).
A esquerda, entre tantos estados, neste momento governa o Maranhão. E o fazemos com pleno espírito laico, que não significa ser antirreligioso. Ao contrário, temos apoiado a realização de eventos religiosos; ampliado a assistência religiosa ao sistema penitenciário e de segurança, mediante capelanias; e estruturado políticas públicas em parceria com várias religiões, a exemplo do Programa Maranhão Solidário, que apoia financeiramente ações sociais. O governante pode ter uma crença religiosa, no caso do Maranhão de orientação católica, porém o governo não pode privilegiar ou discriminar ninguém por motivo religioso. E tais garantias ingressaram no nosso sistema constitucional em 1946 por iniciativa de um deputado comunista, o reconhecido escritor Jorge Amado, autor da emenda consagradora da liberdade de crença e do livre exercício dos cultos religiosos.
Inspirados, portanto, na primazia das convergências sobre as divergências e nos exemplos práticos mencionados é que consideramos que o aprofundamento do diálogo entre a esquerda brasileira e as religiões é um caminho imprescindível para que nossa nação tenha paz, a verdadeira paz que é fruto da justiça (Isaías, 32:17).
Flávio Dino é governador do Maranhão, Júlio Vellozo é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie