O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reiterou na terça-feira (28) ao Supremo Tribunal Federal (STF) que interrompeu a prática do orçamento secreto. Disse ainda que não usou os recursos remanescentes do esquema para barganhas com o Congresso Nacional. A manifestação foi encaminhada pela Advocacia-Geral da União (AGU), comandada pelo ministro Jorge Messias, em resposta a um questionamento do ministro do STF e ex-ministro da Justiça Flávio Dino.
Apesar do que diz a AGU, há inúmeros exemplos da continuidade de repasses sem transparência durante este ano eleitoral, como mostrou o Estadão.
A manifestação da AGU foi feita em resposta a um questionamento apresentado por Dino no dia 18 de abril deste ano. Dino também pediu esclarecimentos aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sobre a eventual continuidade da prática conhecida como orçamento secreto, relevada pelo Estadão em 2021. Também nesta terça-feira, o caso foi encaminhado a Flávio Dino para julgamento.
O despacho de Dino veio após provocação de entidades que atuam no tema do combate à corrupção. De acordo com a Transparência Internacional, a Transparência Brasil e a Contas Abertas, o governo Lula está descumprindo a decisão do STF de dezembro de 2022 que declarou inconstitucional a prática do orçamento secreto, proibindo a continuidade do mesmo. O despacho do ministro foi feito na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854, apresentada pelo PSOL ainda em 2021, e que resultou na decisão de 2022.
Segundo as entidades, a decisão de dezembro de 2022 do STF continuou sendo violada de três formas: primeiro, com o uso dos R$ 9,85 bilhões para barganhas com o Congresso; com o uso intensivo das chamadas “emendas Pix”; e com a falta de informações efetivas sobre a distribuição das antigas emendas de relator. As entidades se manifestaram enquanto “amicus curiae” (“amigos da Corte”, um terceiro interessado no processo).
O despacho da AGU foi elaborado pelo Consultor da União Túlio de Medeiros Garcia, e ratificado por Jorge Messias no fim da tarde de ontem. No documento, a AGU reproduz uma manifestação do Ministério do Planejamento, segundo a qual os R$ 9,8 bilhões remanescentes do orçamento secreto não foram objeto de indicações de deputados e senadores. Este tipo de indicação, feito sem transparência sobre os verdadeiros “padrinhos” das verbas, foi proibido pelo STF em dezembro de 2022.
“As emendas classificadas com RP 2 não gozam de quaisquer prerrogativas dos parlamentares quanto à indicação na execução ou solicitações de remanejamento, explicitando na norma que essas dotações não diferem das outras classificadas com RP 2 dos órgãos. Sendo assim, dotações classificadas com RP 2, oriundas ou não de emendas, são executadas pelos órgãos sem o requisito de observância de indicações parlamentares, recaindo sobre o órgão a gestão da execução da despesa”, diz um trecho. No jargão do Orçamento, o código RP-2 é destinado às verbas discricionárias do Executivo.
Ao enviar a proposta de Orçamento de 2023 para o Congresso, ainda em 2022, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) reservou R$ 19,4 bilhões para as chamadas emendas de relator. Identificadas no Orçamento com o código RP-9, essas emendas estavam na base do esquema do orçamento secreto. Depois da decisão do STF proibindo a prática, o dinheiro foi dividido pela chamada “PEC da Transição”, aprovada em dezembro de 2022, em duas partes: R$ 9,6 bilhões viraram emendas individuais de deputados e senadores, sob o código RP-6, e R$ 9,85 bilhões voltaram aos ministérios como RP-2. É justamente esta parte que o governo Lula continuou usando para barganhas com o Congresso.
Em ano eleitoral, dinheiro vira trunfo para aliados
Com apenas 2,2 mil habitantes, a cidade de Curral Velho (PB) é um exemplo de como a determinação do STF tem sido ignorada pelo governo Lula. Localizada a 371 km da capital João Pessoa, o município receberá do Ministério das Cidades um total de R$ 3,3 milhões das verbas que sobraram das antigas emendas de relator. A distribuição desses recursos tem sido motivo de celebração por parte de políticos nas redes sociais. Nas redes da prefeitura de Curral Velho, o dinheiro é apresentado como “emenda parlamentar” – o que não é o caso.
O dinheiro será usado para asfaltamento de vias e construção de uma praça. O prefeito da cidade, Samuel Carnaúba (MDB), é ligado ao vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB). Além dos R$ 3,3 mihões do Ministério das Cidades, o município receberá também R$ 955 mil em verbas remanescentes do orçamento secreto via Ministério dos Esportes, para uma academia ao ar livre. A prefeitura de Curral Velho resolveu divulgar em sua conta oficial no Instagram a cópia dos contratos de repasse, o que permite rastrear a origem do dinheiro.
A praça esportiva, por exemplo, foi atribuída a uma “emenda parlamentar” do deputado federal Mersinho Lucena (PP-PB). Em seu primeiro mandato no Congresso, Lucena não tem emendas apresentadas ao Orçamento de 2023 porque ainda não era deputado em 2022, quando a proposta orçamentária foi votada. O dinheiro que bancará a obra está sob a rubrica A4, como ficou marcado o espólio das emendas de relator.
Em abril deste ano, Lucena disse ao Estadão que a comunicação da prefeitura se equivocou ao noticiar os recursos como emenda parlamentar. “É falta de conhecimento do gestor, ou de algum secretário de comunicação. Na verdade, a gente fez essa indicação para mandar para lá, na época. Curral Velho é uma cidade que, se você verificar aí, eu tive, proporcionalmente, a maior votação (…). E o prefeito tem feito um trabalho muito forte na cidade. E aí a gente conseguiu ter a possibilidade de fazer uma indicação. Não quer dizer que seja emenda parlamentar individual. Mas aí às vezes é falta de conhecimento (…). Eles não conhecem essa questão dos códigos (orçamentários)”, disse.
Nos corredores do Congresso, este tipo de recurso é geralmente chamado de “extra”. Diferentemente das emendas, a negociação é informal, sem registros sobre os padrinhos e madrinhas. É feita de acordo com a conveniência política, sem necessidade de atender igualmente a todos os deputados e senadores. Segundo Mersinho, verbas assim são às vezes negociadas diretamente com os ministros. “Hoje, o ministro (André) Fufuca, do Esporte, é do Progressistas. Eu mostrei alguns projetos para ele, no final do ano passado, de academias ao ar livre, e ele gostou do projeto”, conta. (Estadão)