Segundo levantamento da Agência Pública, ex-presidente José Sarney teria antepassado que combateu Balaiada e “patriarca do sertão”, e trisavô de Itamar Franco teria participado da negociação de escravizados.Este texto faz parte do Projeto Escravizadores, uma investigação inédita da Agência Pública. O trabalho foi financiado pelo Pulitzer Center e republicado pela DW.
Na entrada de Oeiras, cidade de quase 40 mil habitantes no centro do Piauí, um “herói” brasileiro foi imortalizado em uma construção que celebra a data mais importante do calendário oficial do estado. O Monumento 24 de Janeiro, inaugurado em agosto de 2021 após anos de idas e vindas e promessas frustradas de governantes, destaca os feitos de Manuel de Sousa Martins [em grafias antigas, o sobrenome Sousa aparece também com Z], o primeiro barão e visconde da Parnaíba. Ele foi responsável, segundo a história oficial, por consolidar a independência do Piauí, justamente em 24 de janeiro de 1823, na própria Oeiras, então capital do Piauí, quando se declarou ao lado de dom Pedro I e lutou no confronto sangrento da Batalha do Jenipapo, uma das batalhas da independência do Brasil.
Mas o legado do visconde da Parnaíba não se resume aos louros da guerra e da adesão do Piauí ao Estado imperial brasileiro. Martins era pecuarista, dono de grandes fazendas herdadas do pai, que tinha o mesmo nome do filho. Nessas propriedades, o visconde teria usado o trabalho de escravizados.
Segundo pesquisa da Agência Pública, que mapeou a genealogia de mais de cem autoridades brasileiras, o visconde é o quinto avô do ex-presidente brasileiro José Sarney, primeiro a governar o país após o fim da ditadura de 1964 e responsável por consolidar o clã familiar dos Sarney no controle do estado do Maranhão.
Além de Sarney, a Pública encontrou na linhagem de mais três ex-presidentes antepassados que teriam mantido mão de obra escravizada: Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco.
A herança escravizadora do patriarca do sertão
A linhagem de Sarney vai longe, muito longe. Para contar a história do seu quinto avô, visconde da Parnaíba, que viveu entre 1767 e 1856, é preciso voltar ainda mais no tempo.
Os antepassados do ex-presidente podem ser identificados com certa facilidade até quase o ano 1500, quando Pedro Álvares Cabral desembarcou em Porto Seguro. Isso porque Sarney descende de uma família tradicional que tem envolvimento com a política brasileira há séculos, os Coelho Rodrigues. A memória dessa família é muito bem preservada, pela quantidade de cargos públicos e posses que seus membros tiveram ao longo dos anos, o oposto do que ocorre com os antepassados de pessoas negras descendentes de escravizados.
Talvez o membro mais antigo da família que ainda guarda notoriedade atualmente seja Valério Coelho Rodrigues, avô do visconde da Parnaíba e sétimo avô de Sarney. Valério, que nasceu em Portugal, na freguesia de São Salvador do Paço de Sousa, em 1713, foi um dos principais colonizadores do interior do Piauí, apelidado de “patriarca do sertão”. O sobrenome Coelho Rodrigues vem de seus avós portugueses, Francisco Coelho e Bento Rodrigues, nascidos no século 17.
Valério ocupou diversos cargos na então capitania do Piauí, desde juiz até ouvidor-geral. Ele era dono da fazenda do Paulista, que ficava num arraial de mesmo nome – a região se tornaria o que hoje é o município de Paulistana. Como muitos homens donos de terra no seu tempo, ele também seria um escravizador. A Agência Pública encontrou registros de pessoas que teriam sido escravizadas na propriedade de Valério, que foram reunidos por um grupo de genealogia dedicado ao próprio patriarca.
“Aos três de agosto de mil setecentos secenta e sete na Fazenda do Paulista Ribeira do Canindé, batizei solenemente e pus os santos óleos a Euzebio filho de Maria Rodrigues preta angolla solteira, escrava de Valério Coelho Rodrigues, pai incógnito” [sic], diz um registro de batismo.
Outros documentos dão conta de batismos de Florêncio, filho de Theodozia, em 1768; de Maximiniano filho de Anna, em 1773; de Ignacia, filha de Benta, em 1774; e de Luiza, filha de Quiteria, no mesmo ano. Em comum, Theodozia, Anna, Benta e Quiteria são todas identificadas como “escravas de Valério Coelho Rodrigues”, na fazenda do Paulista.
A história oficial dá tanta importância ao “patriarca do sertão” que foi criado um prêmio que leva o seu nome: a Ordem Estadual Valério Coelho Rodrigues, decretada em 19 de agosto de 2013 pelo então governador do Piauí Wilson Nunes Martins, na época filiado ao PSB. O próprio ex-governador é um dos herdeiros de Valério – como indica o sobrenome Martins, o mesmo do visconde da Parnaíba. Ele foi homenageado também pelo Tribunal de Justiça do Piauí no ano passado, quando o presidente do tribunal discursou a favor de Valério e se tornou sócio benemérito da Associação de Descendentes de Valério Coelho (ADVC), criada para preservar a memória do patriarca e congregar seus descendentes que até hoje se reúnem em eventos no estado.
Falecido em 1782, o patriarca deixou posses ao seu filho Manuel, que, por sua vez, repassou o legado para seu herdeiro, também chamado Manuel, homem que se tornaria o visconde da Parnaíba.
O herói que garantiu a independência do Piauí e a continuação da escravidão
Manuel de Sousa Martins é celebrado como um dos nomes de maior sucesso da linhagem de Valério Coelho Rodrigues. Isso porque, em 1823, ele ajudou a consolidar a adesão do Piauí à independência do Brasil, que havia sido proclamada no ano anterior pelo imperador dom Pedro I, às famosas margens do rio Ipiranga, em São Paulo.
Martins foi um dos responsáveis por comandar tropas locais contra os portugueses no norte do Piauí, na região do delta do Parnaíba. As tropas lusitanas foram para o interior, em direção a Oeiras, e no caminho foram interceptadas pelos separatistas, como relembra estudo de Pedro Vilarinho Castelo Branco, do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
A chamada Batalha do Jenipapo é frequentemente referenciada como o conflito armado mais sangrento pela independência do país – o humorista Whindersson Nunes chegou a anunciar que faria um filme sobre o evento. Na ocasião, os brasileiros enfrentaram os portugueses comandados por João José da Cunha Fidié.
Com a contribuição na batalha e uma inteligente articulação política feita após a batalha, estava selado o legado de herói libertador do Piauí, e Martins se tornou o primeiro presidente da província, desbancando outras lideranças. Em 1825, ele seria agraciado com o título de barão da Parnaíba, por dom Pedro I, após ter atuado em prol do imperador contra revoltas como a Confederação do Equador, quando Pernambuco e parte das províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará tentaram a independência.
Antes mesmo de conquistar a glória no Piauí, Martins já seria conhecido como proprietário de terras e de pessoas escravizadas. Ele herdaria, pelo pai, diversas fazendas, onde seguiria usando mão de obra escravizada, tal qual seu avô e seu pai teriam feito. “Manuel de Sousa Martins era um grande proprietário de terras e escravos e vice-presidente da Junta Governativa em 1821”, descreve a tese de doutorado de Francisca Raquel da Costa, da pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Segundo os registros, em 1826, período em que o presidente da província era o barão da Parnaíba, a população total do Piauí seria de 84,4 mil pessoas, sendo 25,1 mil delas escravizados (identificados como pretos, pardos e mulatos).
No trabalho, que analisa a escravidão e reescravização de pessoas livres no Piauí no século 19, a pesquisadora aponta como o herói do estado também seria responsável por reprimir a revolta da Balaiada na província. A insurreição, que começou no Maranhão, mas se espalhou para o Piauí e Ceará, durou entre 1838 e 1841 a partir da rebelião de pessoas pobres contra medidas autoritárias, como o recrutamento obrigatório.
Segundo a tese, o barão da Parnaíba seria “conhecido como implantador de uma ditadura rural no Piauí”, devido à legislação que permitia o recrutamento forçado de homens e jovens para lutar contra os revoltosos. O trabalho resgata inclusive a história de um jovem “mulato” de 16 anos, Luiz Mandy, que teria sido enviado para a luta e ficou anos lutando pela sua liberdade contra um coronel.
“Nesse período, o presidente da província era Manuel de Sousa Martins também conhecido como o Barão da Parnaíba e que ficou muito famoso devido à força com a qual comandou a província durante seu governo e também a repressão que organizou juntamente com os líderes de cada região do Piauí, inclusive Miranda Ozório, em relação ao movimento de insurreição”, descreve.
O clã Sarney no Maranhão
A linhagem de Valério Coelho Rodrigues, como apontamos, levaria a uma família numerosa, que até hoje mantém, orgulhosa, sua genealogia.
Essa linha começa com o filho do visconde, José de Sousa Martins, que teria atuado junto ao pai na independência do Brasil, mas também na repressão à Balaiada. Ele é pai de Leopoldina Ferreira de Sousa Martins, mãe de João Leopoldino Ferreira, que foi juiz e bisavô de Sarney.
João é pai de Assuero Leopoldino Ferreira, avô de Sarney, que se mudou para o Maranhão. Ele teve Kyola Ferreira de Araújo Costa, mãe de Sarney, nascida em Pernambuco, mas que também foi para o Maranhão. Ela, por sua vez, se casou com Sarney de Araújo Costa, pai do ex-presidente, que, na verdade, foi batizado como José Ribamar. O nome Sarney viria do fato de ele ser conhecido como Zé do Sarney, devido à fama do pai, que foi promotor e desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Com um pai estabelecido na Justiça, Sarney fez carreira no Legislativo e no Executivo. A lista de cargos que ele ocupou é extensa – e costuma ser referenciada como a maior entre os parlamentares brasileiros vivos. Sarney ocupou o primeiro cargo há quase 70 anos, quando passou de suplente a deputado federal em exercício em 1955. Ele já foi filiado a cinco partidos (PSD, UDN, Arena, PDS e MDB), senador pelo Maranhão e Amapá, governador do Maranhão, presidente do Senado e, talvez o cargo mais conhecido, o primeiro presidente do país após o fim da ditadura de 1964, quando substituiu Tancredo Neves, morto em 1985 antes de tomar posse.
Sarney também instalou sua linhagem no poder: seu filho José Sarney Filho foi deputado federal nove vezes seguidas; sua filha, Roseana Sarney, deputada federal, governadora do Maranhão e senadora; e o neto José Adriano Cordeiro Sarney, deputado estadual. A família Sarney controla o maior grupo de comunicação do Maranhão, o Mirante, tem laços com grandes grupos empresariais de comércio e até mesmo da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), através do seu filho Fernando José Macieira Sarney.
O trabalho de doutorado de Elthon Ranyere Oliveira Aragão, na Universidade Federal de Sergipe (UFS), descreve bem a teia de relações dos Sarney no Maranhão, apontando como a maioria dos deputados estaduais era eleita com apoio do clã. “Além disso, retribuições em forma de doação de concessões de radiodifusão eram comuns, principalmente quando José Sarney foi presidente da república na segunda metade da década de 1980. Os políticos que por ventura perdessem as disputas nos municípios ainda eram agraciados com cargos na administração estadual, através de secretarias (titulares ou adjuntas) no período estudado”, diz.
Questionado sobre as relações com o herói da independência do Piauí e seu passado escravizador, Sarney respondeu à Pública que “se eu tivesse vivido na época de meu pentavô, tendo recebido a sua pergunta, eu diria: ‘Vou puxar a orelha desse Visconde, que deve libertar todos os seus escravos, pois sou abolicionista e vou, ao longo do séc. XIX, ao lado de Joaquim Serra e Joaquim Nabuco, cada vez mais, lutar por essa causa.'”
“E acrescentaria que ‘eu, no futuro, apresentaria (como apresentei) o primeiro projeto no Brasil das quotas raciais para ascensão da raça negra e ainda que criaria a Fundação Palmares durante a comemoração dos 100 anos da Abolição da escravidão’.”
O ex-presidente ainda completou: “O meu ancestral mais próximo, fruto do meu amor e da minha admiração, é minha mãe, retirante da seca de 1921, de Pernambuco para os vales úmidos do Maranhão”. Veja a resposta completa aqui.
Os indícios de escravidão na linhagem de Itamar Franco
A pesquisa da Pública mostra ainda que trisavô do ex-presidente Itamar Franco, morto em 2011 devido a uma leucemia, teria participado de negociação de escravizados, inclusive de uma jovem de 16 anos, chamada Maria.
A genealogia de Franco tem início no ano de 1898 – essa é a data mais antiga na linha do tempo exibida no site do Memorial da República do Presidente Itamar Franco, organização herdeira do Instituto Itamar Augusto Franco, ligada à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e responsável por guardar o histórico oficial do político.
No ano, como destaca o Memorial, nasceu Augusto César Stiebler Franco, o pai de Itamar, um engenheiro que viria a falecer pouco tempo antes do nascimento do filho. O nome de Augusto, nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, acrescentou mais uma importante figura à linhagem dos Franco, que vai muito além do ano de 1898, a despeito do que consta na memória oficial.
Segundo a Agência Pública apurou, há ao menos mais três ascendentes conhecidos de sobrenome Franco na família do ex-presidente: o avô, Arquimedes Pereira Franco; o bisavô, Atabalipa da Cayba Americano Franco; e o trisavô, Vicente Ferreira Franco.
É justamente esse último antepassado que, segundo os registros históricos do Tabelionato do 1º Ofício do Fórum Desembargador Filinto Bastos, que a Pública acessou, teria participado da negociação de pessoas escravizadas. Os registros dão conta de ao menos três – um deles, uma jovem de 16 anos, chamada Maria, oferecida como garantia em uma transação como um imóvel qualquer.
A reportagem questionou o Memorial para esclarecer os achados sobre a árvore genealógica e a relação do antepassado de Itamar com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O Memorial respondeu que “o supervisor do Memorial da República Presidente Itamar Franco encontra-se de férias, não podendo participar do levantamento em questão dentro do prazo estipulado para resposta”. O órgão enviou material publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, que foca na genealogia materna de Itamar.
Itamar Franco assumiu a Presidência do Brasil entre 1992 e 1995, depois do impeachment de Fernando Collor de Melo. Nascido a bordo de um navio que fazia a rota entre Salvador e Rio de Janeiro, foi registrado na capital baiana. De família mineira, ingressou no Exército em Juiz de Fora (MG), onde também se formou como engenheiro. Também foi prefeito de Juiz de Fora, governador por dois mandatos em Minas Gerais e se elegeu senador pelo estado.
Na vila, vendiam-se casas, vendiam-se Marias
Vicente Franco, nascido no Ceará, morreu no Rio de Janeiro em 1863, segundo o obituário da edição do jornal Correio Mercantil de 24 de abril. A causa, de acordo com o periódico, foi “febre algida”, termo usado para descrever quadros febris causados por complicações após infecções.
Antes de chegar ao Rio, o trisavô Franco teria vivido um tempo na Bahia, na antiga Villa do Arraial de Feira de Santanna, que mais tarde originaria a atual cidade de Feira de Santana. Isso é o que aponta o livro de notas número 4 da Villa, referente ao período de 1839 a 1847. O documento foi compilado pelo trabalho de conclusão do curso de história de Maria Alice de Sá Barbosa Mendes, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), de 2018.
O livro de notas mostra que Vicente Franco teria hipotecado uma casa, isto é, oferecido o imóvel como garantia de uma dívida, na rua da Alegria, em 1842, por 920 mil-réis. Para ter uma comparação, com a ressalva de que é uma aproximação, na obra 1822 de Laurentino Gomes, uma libra esterlina valia cerca de 5 mil réis. Uma libra esterlina em 1822 valeria, hoje, cerca de 100 libras. Então, 920 mil réis valeria em torno de R$ 135 mil.
No mesmo ano, há um segundo registro de hipoteca na mesma rua, dessa vez por 1 conto e 100 mil-réis, ou 1,1 milhão de réis. Este é sinalizado como um imóvel de Franco com a sua esposa, dona Antonia Delmira Franco, trisavô de Itamar. Quem recebeu a garantia, de acordo com as notas, foi o capitão Antonio Augusto Guimarais, com sobrenome escrito dessa forma.
É justamente no mesmo ano, e na mesma Villa de Santana, que Vicente Franco teria participado da negociação de duas pessoas escravizadas, a primeira delas, Maria, de 16 anos. Em 14 de fevereiro de 1842, uma xará da jovem negociada, Maria Thomazia do Nascimento, assina uma escritura de empréstimo que tomou de Franco. No acordo, que valeu 166 mil-réis e teria duração de três meses, Maria, a escravizada, foi posta como garantia tal qual os imóveis da rua da Alegria, caso o empréstimo não fosse quitado. Assim como um imóvel, uma pessoa escravizada poderia ser colocada como garantia de um empréstimo, porque era vista como propriedade. Na Bahia, o preço médio de um escravizado em 1840 chegava a 450 mil réis, segundo o livro Ser Escravo no Brasil, de Kátia Mattoso.
Dois dias depois, em 16 de fevereiro, o nome de Vicente Franco aparece novamente em um acordo envolvendo uma pessoa escravizada. Dessa vez, ele se chama Gonçalo, identificado como “crioulo”. O acordo, no valor de 100 mil-réis, indica que Antonio Vidál Corrêa Lima, através do seu procurador e filho Antonio Lião Corrêa Lima, teria confirmado a compra de Gonçalo por Franco.
Pessoas vendidas como coisas
As informações de compra e venda de pessoas escravizadas no passado de Feira de Santana são acessíveis graças aos registros históricos do Tabelionato do 1º Ofício do Fórum Desembargador Filinto Bastos. Uma série de documentos que vão de 1830 a 1880 foi recuperada e digitalizada pela UEFS e pelo Tribunal de Justiça da Bahia, num trabalho que buscou resgatar a história da escravidão na região. A catalogação do material teve como objetivo tornar mais prático o acesso aos documentos, auxiliando a comprovar a relação entre senhores e seus respectivos escravizados.
Segundo o vice-coordenador do Cedoc, Aldo Silva, é muito comum não associarmos ao papel de escravizadores o nome de pessoas que desempenharam um importante trabalho social. “É o caso do padre Ovídio, que nomeia uma das praças centrais da cidade”, diz. “Isso porque, por muito tempo, a população não acreditava que havia trabalho escravo aqui na cidade. E há um motivo para isso: proprietários de escravos sempre estiveram ligados ao poder econômico e político, à medida que promoviam uma imagem de que não havia resistência contra esse tipo de organização social.”
São justamente esses registros que mostram um terceiro acordo de pessoa escravizada que envolveria o antepassado de Itamar. Dois anos depois da negociação de Maria e Gonçalo, o nome de Vicente Franco, o parente do ex-presidente, aparece novamente nos registros, dessa vez sendo ele quem teria vendido Antonio, que era parte do dote da esposa, para Fortunato Mascarenhas José, por 500 mil-réis.
Os documentos também indicam que Maria, a jovem escravizada dada como garantia em 1842 entre Vicente Franco e Maria do Nascimento, seria vendida um ano depois, para Anna Aguida Cerqueira, por 400 mil-réis.
Os mesmos registros indicam que o capitão Antonio Augusto Guimarais – o mesmo homem que aparece na hipoteca da casa de Vicente Franco, em 1842 – teria negociado, um ano antes, um jovem escravizado de nome Faustino com Manoel Ferreira de Carvalho. A transação teria ocorrido por 120 mil-réis.
De acordo com os registros, um escravizado também de nome Faustino seria vendido, um ano depois, junto a um grande grupo de “mais de 20 pessoas escravizadas: homens, mulheres, idosos, crianças de 2 anos de idade, saudáveis e enfermos”, numa grande transação de 70 milhões de réis que negociou em uma tacada o engenho chamado de Lixa, seus pastos, cercas e pessoas escravizadas.
Mercado colonial girava à custa de escravizados
Um casal de quintos avós de Itamar Franco, Pedro Antonio da Fonseca e Joaquina Maria dos Prazeres, também teria sido dono de escravizados.
Em 1802, um inventário dos bens da dupla, que eram lavradores de tabaco e pecuaristas, contou 17 pessoas escravizadas, sendo doze homens e cinco mulheres, dos quais oito eram crianças.
Todos viviam na fazenda do Salgado, em São Pedro da Muritiba, parte do que é hoje o município baiano de Muritiba. Segundo os registros, era lá que vivia Inácio, identificado como crioulo, que trabalhava com “serviço da enxada” e “carreiro”, avaliado em 140 mil-réis; Domingos, identificado como de origem angola, que era vaqueiro, também era usado no “serviço da enxada” e “valia” 140 mil-réis, e Francisco, igualmente notado como angola, do “serviço da enxada” e “fumeiro”.
O levantamento foi feito pela dissertação de mestrado de 2015 de Ana Paula de Albuquerque, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A pesquisa se baseou em inventários, o rol de fazendas e lavradores do Recôncavo, uma lista de enroladores de tabaco de 1809 e documentos de representações, petições e pareceres.
Segundo o trabalho, a economia do Recôncavo baiano nos séculos 18 e 19 dependeu da mão de obra escrava, e os lucros que esse tipo de cultivo gerou acabaram potencializando o tráfico de pessoas. “O fumo, por sua vez, era a principal moeda de troca para a aquisição desses escravos […] o tabaco da Bahia, além de ter sido produzido para abastecer o mercado europeu, alcançou elevados níveis de exportação através do comércio com a Costa da Mina, pois serviu de incremento para o tráfico de escravos”, descreve.
O casal Pedro da Fonseca e Joaquina dos Prazeres teve como filha Maria Magdalena do Espírito Santo. Ela, por sua vez, foi mãe de Joaquim Antunes da Fonseca, pai de Amélia Pires Pedreira de Cerqueira Lima. Já Amélia se casou com Atabalipa Franco, bisavô do ex-presidente Itamar e filho do casal Vicente e Antônia Franco, que estariam envolvidos nas negociações de pessoas escravizadas em Feira de Santana. (Isto É)
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