• Por que fazer uma réplica da Torre Eiffel na cidade de São Luís?

    Por  Helena Degreas (Jovem Pan)

    Dias atrás, o senador Roberto Rocha defendeu em uma live realizada em rede social um projeto de sua autoria no qual pretende construir uma réplica da Torre Eiffel em São Luís do Maranhão. O local escolhido para erguer o novo marco urbano seria a Lagoa da Jansen, por tratar-se da única capital do Brasil fundada por franceses. Ao longo de sua fala, o senador citou a Torre Eiffel em Paris e a Estátua da Liberdade em Nova York como símbolos universais que não apenas marcam as duas cidades, mas são responsáveis por sua relevância cultural. De uma só tacada, o parlamentar conseguiu reduzir a importância de duas cidades mundiais a uma torre e a uma estátua. Nas entrelinhas, o senador sugere que falta à capital maranhense certa identidade, um símbolo capaz de distingui-la das demais cidades brasileiras, quiçá, mundiais. Daí a importância da inserção da réplica da Torre Eiffel na paisagem ludovicense. É uma forma de ser “lembrada” pelos cidadãos. Conhecido por seus projetos inusitados, Rocha apresentou na semana passada mais uma outra proposta ao site “O Antagonista”. Utilizando a mesma argumentação, ele descrevia a intenção de erguer uma “Estátua da Liberdade” na pequena cidade de Nova York, às margens da barragem de Boa Esperança, no interior do estado maranhense, como forma de promover o futuro balneário. “É um projeto lindo”, exclamou.

    O senador desconhece que as paisagens são construídas ao longo do tempo e resultam sempre de um processo de acumulação de formas, objetos, técnicas e instrumentos criados pelo ser humano para ajudá-lo a viver em um contexto de organização social. É na mistura de ruas, prédios, florestas, jardins, rios, praias, formas de vida, tradições, culturas, etnias que a paisagem materializa o que tem de espetacular: a visão de um mosaico e de uma mistura de tempos e objetos datados visíveis por todos, sempre e em qualquer lugar. Para o parisiense, a Torre Eiffel simboliza a construção de um monumento para o evento “Exibição Universal” que ocorreu em 1889 em Paris. Presente do governo francês para os Estados Unidos, a Estátua da Liberdade simboliza a independência da colonização inglesa. Nos dois casos, seu valor simbólico ultrapassa o papel de recordação de viagem ou ponto adequado para tirar uma selfie e postar nas redes sociais.

    Antes mesmo dos franceses, o Maranhão já era densamente habitado por povos indígenas que, resistindo à ocupação portuguesa promovida pelo tesoureiro João de Barros em 1535, levaram ao abandono da colônia de Nazaré, provavelmente localizada onde hoje encontra-se a cidade de São Luís. Foi só depois, no ano de 1612, que Daniel de La Touche construiu um forte nomeado de Saint-Louis e fundou oficialmente a vila ou ainda, a França Equinocial. Três anos depois, em 1615, os portugueses retomaram o lugar expulsando os franceses e, décadas depois, também os holandeses, iniciando a colonização portuguesa. Informações como essas encontram-se disponíveis em livros escolares, em plataformas dedicadas ao turismo e no endereço eletrônico da secretaria de turismo do Estado do Maranhão, bem como no da Prefeitura de São Luís. Basta consultar.

    “A torre que o senador pretende construir será implantada na Lagoa da Jansen. Esta lagoa, ou melhor laguna, é tida pela população como referencial urbano. O igarapé da Jansen começou a ser represado após 1973, e formada a laguna definitivamente no governo de Luís Rocha (1983-1987), pai do senador, quando foram feitas as obras da Avenida Ana Jansen e Avenida dos Holandeses no trecho Ponta D’Areia. Entretanto, desde 1950, já havia um projeto rodoviário, preâmbulo do Rodoviarismo Maranhense, para expandir a cidade para o nordeste da Ilha, e um projeto de um parque inspirado na modernidade Howardiana (Ebenezer Howard, com parquinhos, pedalinhos, laguinhos, quadras e outras coisas romantizadas dessa tendência do século XIX), idealizado pelo engenheiro Rui Mesquita. O resultado é que, depois da urbanização final da Lagoa da Jansen em 2002 e da valorização imobiliária do entorno, a ‘Lagoa’ tornou-se um marco referencial em si”, afirma a professora arquiteta urbanista Barbara Irene Wasinski Prado, Pesquisadora e Coordenadora do Laboratório da Paisagem e do Ambiente Construído do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual do Maranhão.

    O que marca a paisagem da cidade é o mosaico, a mistura de processos e elementos que foram sendo construídos e sobrepostos ao longo dos anos por todos os povos que ocuparam e que atualmente vivem na cidade: os indígenas, os portugueses, os franceses, os holandeses, os portugueses novamente e todos os que habitam hoje o local. Embora para o senador a cidade não apresente nada memorável ou digno de recordação, a preservação da paisagem cultural e ambiental de São Luís é tão significativa para o mundo que o acervo arquitetônico, urbanístico e ambiental composto por cerca de 3.500 casas e sobrados ricamente azulejados, mirantes, solares, centros culturais, museus, portos, fontes públicas, praças, parques e sistemas naturais foi reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1997 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sediada em Paris. O tombamento apresenta a cidade como referência em si e, como tal, é lembrada pelo mundo como Patrimônio Cultural da Humanidade.

    Reggae, bumba-meu-boi, sururu com leite de coco (recomendo), peixada maranhense (amo), sorvete de tapioca (adoro) e outras delícias satisfazem a todos os gostos: do cidadão ao turista. A cidade é repleta de histórias misteriosas, lendas que são parte do folclore local. Conto aqui uma delas: dizem que a carruagem de Ana Jansen, mulher poderosa e rica, conhecida por seu caráter forte e por maltratar seus escravos, teria sido condenada a vagar por toda a eternidade pelas ruas da cidade numa carruagem assombrada. O coche, amaldiçoado, parte em noites de quinta para sexta-feira do Cemitério do Gavião conduzido por um escravo sem cabeça e puxado por cavalos igualmente decapitados. Outra versão conta que, no lugar dos cavalos, está uma mula sem cabeça. Como leitora voraz de histórias sinistras e de terror, fico com a última versão: é parte do folclore brasileiro. Para mim, a mula sem cabeça é um verdadeiro mito do Brasil. Outros que se autoproclamam mito não passam de conversas para boi dormir. Prado reitera que “a torre, mais do que poluição visual, seria uma construção despropositada e incompatível com a condição atual dessa Unidade de Conservação, o Parque Ecológico da Lagoa da Jansen”. Concordo com a colega. Para que inserir a réplica da Torre Eiffel numa cidade reconhecida internacionalmente, menos pelo senador, como patrimônio cultural da humanidade? Ideias desconectadas da realidade social, ambiental e cultural costumam ser vistas pelos cidadãos e até mesmo pelos turistas que o senador pretende atrair como descabidas, despropositadas, megalômanas ou simplesmente desarrazoadas.

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