• Região com exploração de gás no Maranhão é marcada por degradação ambiental e pobreza

    Um caminhão velho segue pela BR-135, estrada que corta o centro de Santo Antônio dos Lopes, no interior do Maranhão. Na caçamba, carrega dois homens sobre uma montanha de lixo.

    Devagar, o veículo passa em frente a um outdoor na entrada da cidade. A propaganda traz a imagem de uma mulher sorrindo, vestida com uniforme industrial, e uma mensagem sobre a “nova energia que está transformando” o estado e país. “O gás natural da Eneva faz diferença pra você, pro Maranhão e pro Brasil”, diz o anúncio.

    A menos de 1 km da publicidade, o caminhão de lixo deixa o asfalto e pega uma estradinha de terra. Seguimos seu caminho. São poucos metros até o destino final.

    Um lixão a céu aberto, irregular, encobre a floresta. Sobre os escombros e carcaças de animais, os homens acionam a caçamba e despejam lixo hospitalar. São tubos com restos de coleta de sangue, de urina, colchões que foram usados por pacientes, uma infinidade de materiais contaminantes —em flagrante desrespeito às regras ambientais e de vigilância sanitária.

    Sem luvas, os trabalhadores retiram o que resta na caçamba e jogam no solo da maior província de gás fóssil do Maranhão. A riqueza submersa, há mais de uma década, promete mudar a realidade do local, mas até hoje não alterou a precariedade da pequena Santo Antônio dos Lopes, de 14 mil habitantes.

    A Folha percorreu os municípios que formam uma das maiores províncias de gás terrestre do Brasil, para entender as mudanças social, econômica e ambiental de uma região que, desde 2013, passou a ser alvo de intensa exploração do combustível fóssil.

    Uma década atrás, as cidades estiveram na mira das ambições da OGX e do ex-empresário Eike Batista. Hoje as iniciativas são encampadas pela empresa Eneva.

    Santo Antônio dos Lopes, cravada no Médio Mearim, microrregião do estado formada por municípios que ladeiam o rio Mearim, foi a primeira de uma série de cidades maranhenses a receber dinheiro da partilha do gás.

    De 2013 até agosto de 2024, conforme levantamento feito em dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), a cidade recebeu R$ 166,7 milhões em royalties ligados à exploração de gás.

    Hoje, o chamado Complexo Parnaíba, localizado em Santo Antônio dos Lopes, é abastecido por 8,4 milhões de metros cúbicos de gás fóssil de toda a região, insumo que é queimado para gerar energia elétrica e que responde por 9% da capacidade de produção térmica a gás do Brasil. Essa bonança, porém, não está refletida em seu dia a dia.

    Erguida sobre a maior jazida de gás do Maranhão, Santo Antônio dos Lopes tem boa parte de suas ruas com o esgoto correndo a céu aberto. Apenas 5% dos domicílios possuem saneamento básico adequado, segundo dados do IBGE, no Censo de 2022.

    A reviravolta do emprego, que sempre é prometida na chegada da exploração fóssil, também não veio. Em 2022, apenas 10% da população tinha uma ocupação formal.

    Procurada pela reportagem, a Eneva afirmou que paga os royalties previstos em lei, mas que “os agentes privados não possuem nenhum tipo de ingerência em relação à gestão desses recursos pelos governos”.

    A Prefeitura de Santo Antônio dos Lopes, por sua vez, não respondeu ao pedido de esclarecimentos sobre o lançamento de seu lixo hospitalar a céu aberto. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirmou que a gestão do lixo cabe à vigilância local e que sua norma de saúde é “da porta do serviço para dentro”.

    A maioria dos trabalhadores locais depende de bicos, como é o caso de Elisangela Sabino Dantas, diarista que nunca conseguiu um emprego no complexo do gás.

    “É difícil, ainda mais pra gente, que não tem formação. Eu já fui cozinheira num restaurante que vendia comida pra eles. Foi só isso. Voltei a ser faxineira”, diz Elisangela, que mora numa casa de taipa, a poucos metros de uma das estações de tratamento de gás da Eneva, ao lado do complexo.

    Santo Antônio dos Lopes não é caso isolado. A realidade precária permeia os demais municípios deste enclave do gás.

    Capinzal do Norte, de 11,6 mil habitantes, já recebeu R$ 80,1 milhões em royalties desde 2016, quando os primeiros poços foram abertos no território. Até hoje, só 8% da população tem redes de água e esgoto, e 15% dos trabalhadores têm carteira de trabalho assinada.

    A situação é semelhante entre os 11,5 mil moradores de Lima Campos, a “cidade em progresso”, como o município ostenta em seu portal de entrada. Foram R$ 90,5 milhões repassados para seus cofres públicos desde 2016. Até 2022, apenas 15% das casas tinham estrutura básica de calçada, bueiro, pavimentação e meio-fio.

    “Os indicadores sociais continuam péssimos. Existe uma elevação do PIB, mas, como diria a professora Maria da Conceição Tavares, ninguém come PIB. A gente vê que a realidade da grande maioria da população onde hoje há exploração do gás não tem mudado”, diz João Octávio, mestre em história social e membro da coordenação da campanha Boas Energias: Maranhão Sem Fracking.

    O estado continua a ser o campeão de renda mínima, com pouco emprego e problemas ambientais crescentes em todos os territórios, afirma João. “Não se vê nenhum impulso positivo. As matas estão diminuindo, os rios estão ficando cada vez mais comprometidos.”

    Procurado pela reportagem, o Governo do Maranhão disse que registrou, em todas as regiões do estado, a saída de quase 1 milhão de maranhenses da linha da pobreza, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre).

    “Os municípios maranhenses também apresentaram, nos últimos anos, uma expressiva redução na taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais, com queda de 5,8%. A taxa de analfabetismo saiu de 20,9% em 2010 para 15,1% em 2022”, disse a gestão estadual.

    Comunidade dividida
    Em Santo Antônio dos Lopes, uma estrada federal passou a cruzar o caminho da comunidade Demanda. Com a construção do complexo de gás no município, 65 famílias tiveram de deixar o local. Todas foram compulsoriamente removidas para outra área distante dali, cortada ao meio pela BR-135, onde é constante o tráfego de caminhões e carros.

    A comunidade que antes convivia reunida ao redor de um campo de futebol passou, então, a ter dois nomes: Nova Demanda A e Nova Demanda B. Na estrada que divide a vila, não há passarela. Como há escola somente em um dos lados, crianças e adolescentes são obrigados a cruzar o asfalto todos os dias, sem faixa de pedestres.

    O deslocamento das famílias também fez com que laços sociais fossem rompidos, porque moradores passaram a viver em um território completamente diferente do anterior. Hoje, as duas Demandas estão localizadas a cerca de 12 km do centro de Santo Antônio dos Lopes, a apenas 1,5 km do complexo termelétrico.

    “Eu nunca tinha me mudado na minha vida. Não queria sair de lá, mas não tive escolha”, diz Izete Amorim de Souza, ex-quebradeira de coco babaçu, que hoje vive em Nova Demanda B. “Quando cheguei aqui, entrei em depressão. Fui parar em Teresina, no Piauí, pra fazer tratamento.”

    Diversas casas construídas no novo terreno passaram a apresentar rachaduras, outras simplesmente tiveram de ser reconstruídas, por causa de um constante processo de erosão que afeta o solo do local.

    “Os relatos sempre foram de promessas de desenvolvimento, de progresso, mas nada disso ocorreu”, diz Ravena Araújo Paiva, pesquisadora de doutorado em sociologia, que estudou os impactos vividos pela comunidade Demanda a partir da instalação do complexo de gás. “A verdade é que as pessoas foram submetidas a uma mudança violenta, sem opção, por causa de algo que nunca trouxe benefício a elas.”

    Em Nova Demanda A, o lavrador Antônio José, 44, diz que já está habituado com o novo endereço, mas lamenta as condições da estrutura de sua casa. O chão da sala rachou. “Assentei os azulejos, mas trincou tudo. A empresa ficou de passar aqui, pra ver o que pode ser feito”, diz.

    À Folha a Eneva disse que “comprou uma fazenda em localidade de escolha da população” e que cada uma das 65 famílias reassentadas recebeu um lote de 3 hectares e a construção de uma casa. “Também foram providenciadas para a comunidade uma escola, duas igrejas, um centro comunitário e iluminação pública.”

    Sobre os problemas de infraestrutura, a empresa do gás afirmou que “quatro casas apresentaram problemas” e que as famílias têm recebido pagamento de um valor referente a aluguel e transporte até o centro da cidade.

    A 10 km de Nova Demanda A e B, no município de Capinzal do Norte, a espera do progresso também é aguardada desde 2016, quando o município passou a receber os royalties do gás. Até agosto deste ano, mais de R$ 80 milhões entraram nos cofres da prefeitura.

    Paulo Sabá, advogado e ambientalista, morador de Capinzal do Norte, diz que espera sentado. “Os povoados são desprovidos dos investimentos, a gente não vê nada que beneficie a população local”, diz Sabá. “A infraestrutura é zero.” (Folha de SP)

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