Francisco Xavier de Sousa Filho é um advogado maranhense de 78 anos. Trabalhou por décadas no departamento jurídico do Banco do Nordeste, defendendo os interesses da instituição pública. Mais recentemente, já aposentado, passou para o outro lado do balcão. Abriu uma série de processos na esfera cível contra o antigo empregador, exigindo o pagamento de honorários que, segundo ele, nunca foram quitados. A Justiça lhe deu razão em dois casos, e o banco foi condenado a pagar uma bolada de 17,7 milhões de reais.
Nem por isso Sousa Filho se tornou um multimilionário. O advogado vive até hoje no Maranhão Novo, um bairro de classe média baixa de São Luís, não tem veículos registrados em seu nome e nunca viajou para o exterior. Leva uma vida pacata que não condiz com a indenização volumosa. E a Polícia Federal encontrou uma razão para isso: a indenização milionária, tão logo chegou às suas mãos, foi quase toda repassada em partes para advogados, servidores públicos, juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça do Maranhão. Uma movimentação estranha que, segundo uma investigação da Polícia Federal, faz parte de um esquema de venda de sentenças que operou por anos no Maranhão. Para a PF, juízes e desembargadores, mancomunados com advogados, aprovaram indenizações milionárias que, no fim, foram partilhadas pelos participantes do esquema.
O primeiro caso documentado é de 2014. Naquele ano, Sousa Filho reivindicou à 7ª Vara Cível de São Luís o pagamento de honorários referentes a um processo de 1983. O Banco do Nordeste reconheceu que devia mesmo dinheiro ao advogado, e estimou o passivo em 2,5 milhões de reais. Sousa Filho fez uma conta bem diferente: disse que, na verdade, tinha cerca de 14 milhões de reais a receber. A discordância fez o processo se arrastar por meses, até que o juiz responsável pelo caso saiu de licença médica. Coube à desembargadora Nelma Sarney Costa, cunhada do ex-presidente José Sarney, indicar um magistrado para substituí-lo no cargo. Seu escolhido foi o juiz Sidney Cardoso Ramos.
Foi aí que, segundo a Polícia Federal, começou a fraude. Às 8h45 do dia 4 de maio de 2015, Sousa Filho, o advogado, pediu a penhora de 14,1 milhões de reais em títulos do Banco do Nordeste para garantir o pagamento da dívida. O juiz Ramos, recém-inteirado do processo, nem titubeou: em uma hora, acatou seu pedido. Dias depois, o juiz titular da 7ª Vara retornou da licença médica. Sousa Filho pediu então que ele fosse afastado daquele caso, alegando suspeição. A desembargadora Sarney Costa concordou com o advogado e, sem explicar os motivos dessa suspeição, transferiu o caso para a juíza da 5ª Vara Cível de São Luís, Alice de Souza Rocha.
Àquela altura, os contadores do Tribunal de Justiça já tinham chegado à conclusão de que o cálculo de 14,1 milhões era um tanto inflado. Segundo eles, o Banco do Nordeste deveria pagar ao ex-funcionário muito menos: 3 milhões de reais. Mas Rocha, a nova juíza do caso, descartou o parecer dos contadores. Em outubro daquele ano, ordenou a liberação dos 14,1 milhões de reais a Sousa Filho. A burocracia que costuma existir em casos semelhantes foi desembaraçada rapidamente: pouco mais de uma hora depois de publicar a decisão, a juíza expediu o alvará, permitindo que Sousa Filho sacasse a dinheirama. Por volta das 15 horas, no mesmo dia, os 14,1 milhões de reais já estavam na conta de um dos filhos do advogado.
Deu-se início, então, à partilha. A maior parte do dinheiro (12 milhões de reais) foi logo transferida para a advogada Janaína Moreira Lobão Coelho, nora de Sousa Filho. Horas depois, no mesmo dia, ela foi a uma agência do Banco do Brasil em São Luís acompanhada do também advogado Arnaldo José Sekeff do Lago. Sacou 8 milhões de reais e emitiu dezenove cheques com diferentes destinatários, no valor total de 1,7 milhão de reais. Os 2,3 milhões que restaram na sua conta bancária foram sacados nos dias posteriores.
Embasbacados com a série de decisões atípicas da Justiça, os advogados do Banco do Nordeste resolveram denunciar o caso à Polícia Federal, à corregedoria do Tribunal de Justiça do Maranhão e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2015. Na época, porém, as investigações da PF não foram para frente, e tanto a corregedoria quanto o CNJ absolveram os juízes envolvidos no caso. “Não foram apresentados pelo reclamante [banco] ou mesmo apurados durante as investigações preliminares indícios das alegadas atuações ilegais, por parte dos reclamados [os juízes], que demonstrem suficientemente a presença de desvios de conduta”, justificou o relator do caso no CNJ, o ministro Humberto Martins.
A PF só entrou de vez no caso em 2021, quando um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) revelou o estranho caminho percorrido por aqueles 14,1 milhões de reais sacados em 2015. O documento mostrava que um dos dezenove cheques assinados por Janaína Coelho havia sido depositado na conta de um servidor da Assembleia Legislativa do Maranhão, e, de lá, fora transferido para advogados do escritório Maranhão Advogados Associados. A firma tem como sócio oculto, segundo a PF, o ex-deputado federal Edilázio Gomes da Silva Júnior, genro da desembargadora Sarney Costa – justamente quem havia indicado o juiz que deu ganho de causa a Sousa Filho.
A história foi ainda mais longe. Em 2019, Sousa Filho, não satisfeito com os 14,1 milhões de reais que havia pleiteado inicialmente, pediu à juíza Alice Rocha o pagamento de um “saldo remanescente” de mais 10 milhões de reais referentes àquele mesmo processo de 1983. O valor, segundo ele, era referente a um erro de cálculo que lhe prejudicou. O pedido, dessa vez, foi indeferido pelo Tribunal de Justiça do Maranhão. O advogado, então, passou a apostar suas fichas em outro processo que movia desde 2000 contra o Banco do Nordeste, dessa vez cobrando honorários por uma ação judicial de 1987.
O caso, depois de muitos vaivéns, foi parar nas mãos da juíza Alice Rocha, que o considerou prescrito. Sousa Filho, no entanto, recorreu da decisão, e o processo foi parar na segunda instância. Em maio de 2021, os desembargadores Antônio Guerreiro Júnior, Luiz Gonzaga Almeida Filho e Sarney Costa deram ganho de causa ao advogado, decisão mantida pelo STJ. Como o processo de 1987 dizia respeito a uma cliente que devia dinheiro ao Banco do Nordeste, os desembargadores decidiram que a instituição deveria pagar a Sousa Filho 10% do que havia cobrado daquela cliente. Seriam honorários justos, argumentaram. O banco concordou, fechou-se um acordo e o processo foi encerrado.
Sousa Filho, representado pelo escritório Maranhão Advogados Associados, pediu então à 5ª Vara Cível a execução do acordo, para que pudesse receber os 10%. Segundo ele, essa porcentagem equivalia a 3,6 milhões de reais. A Polícia Federal, no entanto, ao se debruçar sobre o caso, concluiu que se tratava de um erro grosseiro de cálculo: Sousa Filho estimou os honorários com base na cotação do cruzeiro, e não do cruzeiro real, que era a moeda vigente no ano do acordo judicial. Esse pequeno deslize inflacionou em mil vezes o cálculo final da dívida do banco. A juíza Rocha, contudo, não se atentou para isso nem pediu parecer dos contadores do Tribunal de Justiça. Acatou o pedido de Sousa Filho e ordenou o pagamento a ele dos 3,6 milhões de reais com correção monetária, o que somava 5 milhões de reais.
Dias depois, Sousa Filho recebeu autorização para sacar a nova bolada. Na mesma hora, o advogado, que naquele momento já era monitorado pela PF, foi a uma agência do Banco do Brasil acompanhado de seu filho Felipe e de um homem não identificado. Por alguma razão de ordem burocrática, porém, não conseguiu sacar o dinheiro (posteriormente o desembargador Guerreiro reverteu a decisão da 5ª Vara e determinou novo cálculo do valor devido ao advogado). No mês seguinte, Fabrício, outro filho do advogado maranhense, enviou à mãe uma mensagem de WhatsApp que dizia: “A gente tem 48 horas pra depositar o da Alice.” A conversa, obtida pelos agentes da PF, também menciona o “dinheiro do Cristiano Simas” e do desembargador Guerreiro.
Em 2024, Sousa Filho ainda conseguiu outros dois alvarás para sacar mais 6 milhões de reais em indenizações do Banco do Nordeste – o relatório da Polícia Federal não informa se o advogado conseguiu, de fato, obter esse montante. Pouco depois, com autorização do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a PF instaurou um inquérito contra Sousa Filho e os desembargadores, juízes e advogados suspeitos de envolvimento nas fraudes. Em 14 de agosto do ano passado, foram cumpridos mandados de busca tanto no Tribunal de Justiça do Maranhão quanto nos endereços dos investigados. Na sede da empresa Maranhão Advogados Associados, os policiais encontraram um bilhete em que estava anotada a cifra de 200 mil reais e a frase “seu amigo aqui estava contando muito com esse valor p/ o mês de outubro confiando que daria certo o negócio c/ o magistrado”. Os investigadores acreditam se tratar de mais uma confirmação de que a firma subornava juízes.
Naquela manhã, o ex-deputado Edilázio Gomes da Silva Júnior voltava de Brasília para São Luís em um voo comercial. Na casa dele, os policiais encontraram quase 800 mil reais em espécie, além de 8 mil dólares e uma máquina de contar dinheiro. O advogado Carlos José Luna dos Santos Pinheiro, um dos integrantes da Maranhão Advogados Associados, arremessou o próprio celular pela janela de casa pouco antes de ser visitado pelos agentes da PF. Não adiantou muito, já que pouco depois o aparelho foi recuperado pela perícia.
Os celulares apreendidos e a quebra dos sigilos bancário e fiscal dos investigados forneceram novas evidências para a polícia. Os agentes da PF concluíram, com base em conversas de WhatsApp, que Edilázio Júnior determinava o conteúdo das decisões da sogra, a desembargadora Sarney Costa, em processos que envolviam o Banco do Nordeste. A PF também constatou 184 transferências de dinheiro feitas por um assessor de Sarney Costa para parentes da desembargadora entre 2019 e 2023. Ao todo, os repasses somaram 621 mil reais. O fato chama atenção porque esse mesmo assessor recebeu dinheiro de dois advogados da Maranhão Advogados Associados: Carlos Luna Pinheiro e José Helias Sekeff do Lago (irmão de Arnaldo, o advogado que sacou a bolada milionária do Banco do Brasil em 2015, ao lado da também advogada Janaina Coelho). Pinheiro, em uma das conversas acessadas pela polícia, escreveu a outro advogado: “TJ é nossa casa.”
A Polícia Federal afirma que Edilázio Júnior teve uma variação patrimonial incompatível com seus rendimentos em 2015, ano em que, segundo a investigação, ocorreu a primeira fraude documentada contra o Banco do Nordeste. O desembargador Luiz Gonzaga, um dos que deram ganho de causa a Sousa Filho, recebeu em suas contas bancárias dezenas de depósitos em espécie, de origem não identificada, que somam 2,3 milhões de reais (a PF não informa o período em que isso aconteceu). Já Alice Rocha, a juíza que deu seguidas decisões em favor do advogado maranhense, recebeu 55 depósitos em espécie entre 2014 e 2023, no valor total de 236 mil reais, e teve, segundo a PF, variação patrimonial incompatível com seus rendimentos. Situação semelhante à de seu substituto na 5ª Vara, Cristiano Simas, que depositou 504 mil reais em espécie em sua própria conta bancária. Parte do dinheiro entrou em datas próximas a uma decisão sua que favoreceu Sousa Filho.
Lúcio Fernando Penha Ferreira, assessor do gabinete do desembargador Guerreiro Júnior, era conhecido pelos colegas como “servidor ostentação”, devido à fortuna que esbanjava sem cerimônia. Entre 2018 e 2020, seu patrimônio declarado saltou de 1,1 milhão de reais para 4,4 milhões, embora seu salário no TJ fosse de quase 16,8 mil reais por mês. Ferreira era dono de automóveis importados e de um apartamento em São Luís adquirido por 3,4 milhões de reais. A Polícia Federal encontrou 47 depósitos em dinheiro em sua conta, sem identificação do remetente. Fabrício, filho do advogado Sousa Filho, reservou palavras pouco elogiosas a Ferreira em conversa com a mãe, pelo WhatsApp. “Esse cara só visa dinheiro. Como ele tá sendo processado, denunciaram ele, aí ele quer se livrar, tá com medo, entendeu? Vagabundo.” Ferreira acabou exonerado do cargo em janeiro de 2024, depois que uma sindicância do tribunal investigou-o por enriquecimento ilícito.
Em fevereiro, 23 investigados, entre eles os desembargadores Nelma Sarney Costa, Guerreiro Júnior e Luiz Gonzaga Almeida Filho, e os juízes Alice Rocha e Cristiano Simas, foram indiciados pela Polícia Federal sob suspeita de cometer os crimes de corrupção ativa e passiva, formação de organização criminosa e lavagem de dinheiro (Sidney Cardoso Ramos, que deu a primeira decisão em favor de Sousa Filho no processo aberto em 2014, não foi indiciado). Todos os magistrados que constam na lista de indiciamentos foram afastados de seus cargos por ordem do ministro João Otávio de Noronha, relator do inquérito no STJ.
Em nota, a defesa da juíza Alice Rocha lembrou que o CNJ absolveu a magistrada no caso julgado em 2015 e que os diálogos que a citam são “mera ilação sem qualquer fundamento fático, a partir de um diálogo de pessoas absolutamente estranhas e desconhecidas” por ela. “A defesa reafirma sua confiança plena na Justiça e na escorreita apuração e segregação dos fatos, atestando que provará a inocência da magistrada nos autos do processo em curso, demonstrando a total lisura de sua atuação como juíza nesse caso, lisura essa que sempre pautou sua atuação profissional ao longo de décadas de exercício da magistratura.”
Os advogados do desembargador Luiz Gonzaga Almeida Filho disseram que todas as suas decisões investigadas pela PF foram “devidamente fundamentadas”, confirmadas pelo STJ e escrutinadas pelo CNJ, que não viu nelas qualquer ilegalidade. “Reafirmamos que a inocência do desembargador Luiz Gonzaga será plenamente demonstrada por meio das provas que serão apresentadas nos autos, com o devido respeito ao processo legal.” A defesa do desembargador Guerreiro Júnior, por sua vez, classificou os indiciamentos da PF como “inconsistentes”, com “imputações pífias, genéricas, cheia de conjecturas e narrativas sem prova alguma”, reforçando que sua decisão favorável a Sousa Filho no caso dos 10% de honorários foi mantida pelo STJ.
O ex-deputado Edilázio Júnior também negou as imputações feitas pela Polícia Federal. “Reafirmo a minha absoluta inocência quanto a todos os fatos investigados no inquérito, sobretudo porque nunca pratiquei nenhum ilícito, não havendo nos autos nenhum ato por mim praticado, mas tão somente ilações e elucubrações que buscam atingir a minha imagem política a partir de eventuais atos de terceiros.” Procurada pela piauí, a defesa da desembargadora Sarney Costa afirmou que, como o inquérito tramita em segredo de Justiça, não irá se manifestar. Os demais envolvidos e seus advogados não responderam aos contatos da piauí. Parte deles não foi localizada até o fechamento desta reportagem. (Revista Piauí)
Uma resposta
De que adianta se o STF vem e abona o crime?