Gado está sendo criado ilegalmente na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, em meio a um número recorde de assassinatos de indígenas guajajaras.
A legislação brasileira proíbe pecuária comercial em terras indígenas, mas uma investigação da Mongabay que durou um ano revela que grandes áreas têm sido usadas para a criação de gado em larga escala desde 2023, o ano mais mortal para os indígenas na Arariboia desde 2016, com quatro guajajaras assassinados e três sobreviventes de atentados.
Há um padrão nos assassinatos em meio à expansão da pecuária e da exploração madeireira ilegais na Arariboia e arredores.
A maioria dos crimes ocorreu nos municípios de Amarante e Arame, regiões que coincidem, em grande parte, com as atividades rastreadas, as operações da Polícia Federal para combater a exploração madeireira ilegal e os embargos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) por desmatamento ilegal.
Não há evidências de que os proprietários das serrarias e fazendas tenham ligação com os assassinatos.
A Arariboia “tem um grande problema porque ela não tem os seus contornos bem protegidos”, diz Hilton Melo, procurador federal focado em questões indígenas baseado em São Luís. “Essa terra sofre muito assédio, muitos ataques, tanto no sentido sul-norte quanto no sentido oriental-ocidental.”
Uma operação para retirar o gado ilegal da Arariboia está planejada para o primeiro semestre de 2025, diz Marcos Kaingang, secretário nacional de direitos territoriais indígenas do MPI (Ministério dos Povos Indígenas). Estimativas variam de 500 a 1.000 cabeças de gado na Arariboia.
“A gente precisa fazer com que o território esteja a pleno e usufruto exclusivo e pleno dos povos indígenas”, diz Kaingang.
O guardião da floresta Paulo Paulino Guajajara, filho de José Maria Paulino Guajajara, foi assassinado em uma emboscada por madeireiros em 2019. José Maria afirma que sua mãe e seu cunhado também foram mortos por madeireiros anos antes.
José Maria diz que forasteiros invadiram a Arariboia há vários anos com plantações e, depois, venderam a terra para pecuaristas. Imagens de satélite mostram que a área onde José Maria mora foi desmatada em 2016.
A sua aldeia está cercada por grandes áreas de pastagem com muitas cabeças de gado. Duas porteiras bloqueiam a passagem na estrada sem pavimentação que leva à aldeia.
Imagens de satélite mostram que 6,5 hectares foram desmatados ao lado da aldeia entre junho e julho de 2016. Do outro lado da estrada, a análise aponta para desmatamento antes de 2016, com construção de casas já em 2015. Não há imagens de satélite disponíveis para períodos anteriores a 2015.
“Eles [os fazendeiros] não querem mais que a gente tire a palha, não querem que nós, índios, andemos para o outro lado mais”, diz José Maria, sobre a área com pastagem para gado ao redor da sua aldeia.
Uma nova área está sendo preparada para pastagem aos pés do morro do Funil. “[Os fazendeiros] chegam aqui na comunidade e muitas vezes falam para o índio: ‘Quer arrendar um pedaço de terra para criar gado? É bom pra vocês’. Mas, na realidade, não é”, diz o guardião Laércio Guajajara, sobrevivente e testemunha do ataque que assassinou Paulo, apontando para estacas de madeira novas em folha.
“Nosso território está sendo encolhido cada dia mais, está descontrolado o avanço de pastagem.”
ILEGALIDADES NO ENTORNO
A reportagem também rastreou ilegalidades e atividades suspeitas nos arredores da Arariboia. Embora a localização das fazendas ao redor da terra indígena não seja ilegal, há desmatamento em desacordo com o Código Florestal dentro dessas áreas.
Em julho de 2023, foi detectado desmatamento ilegal de de 19,4 hectares nas margens da cabeceira do rio Buriticupu, do qual os guajajaras dependem para sua subsistência, a menos de um quilômetro da Arariboia. Um mês antes, uma pista de pouso sem licença começou a ser construída a cerca de 17 km de Arariboia e a 4 km da vizinha TI (Terra Indígena) Governador.
Em ambos os casos, o desmatamento ocorreu em áreas protegidas por lei e as irregularidades estão ligadas a quatro fazendas que também se sobrepõem umas às outras.
O Maranhão não divulga informações sobre os indivíduos por trás dos registros no CAR (Cadastro Ambiental Rural), alegando questões de sigilo por serem informações pessoais. Dados obtidos pela Mongabay através de sua rede de fontes de alto escalão revela quem são esses fazendeiros, muitos deles processados por crimes ambientais, grilagem de terras e lavagem de dinheiro, acusações que eles negam.
De acordo com a base de dados do CAR e análise espacial, uma das fazendas localizadas na área desmatada ilegalmente próxima ao Buriticupu está em nome de Francisco Alves Ferreira, que é acusado de grilagem de terras em uma ação que tramita no Tribunal de Justiça do Maranhão em Amarante.
Em seu depoimento, Ferreira negou as acusações. Uma audiência preliminar foi marcada para 25 de junho. Ferreira não respondeu a vários pedidos de contato da reportagem.
Outra fazenda teve seu CAR registrado pelo fazendeiro Antônio José Alves de Sousa, que invade a TI Governador. Sousa aluga um imóvel para a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) em Amarante há uma década. Sousa não respondeu a diversas tentativas de contato.
A área desmatada também se sobrepõe ao CAR registrado por Adirceu Alves da Silva, cuja fazenda foi embargada anteriormente pelo Ibama por desmatamento ilegal. Silva também está sendo processado pelo Ministério Público Federal do Maranhão por crimes ambientais.
Silva não respondeu a vários contatos da reportagem. Ele negou as acusações em seu depoimento; o processo está em andamento no Tribunal Regional Federal em Imperatriz.
Na área da pista de pouso não licenciada, o CAR de três fazendas foi registrado por Fabricio Lima Gouveia, que é alvo de uma ação penal do Ministério Público Estadual do Maranhão por crimes contra o patrimônio, apropriação indébita e lavagem de dinheiro.
Gouveia e seu advogado não responderam aos contatos feitos pela reportagem. Em seu depoimento, ele negou as acusações; o processo tramita no Tribunal de Justiça em Amarante.
A Sema (Secretaria de Meio Ambiente) do Maranhão confirmou que não foi encontrado processo de licenciamento para a pista de pouso. A pasta disse que os CARs das quatro fazendas que se sobrepõem à área serão analisados “o mais rápido possível” e que o CAR de uma das fazendas foi cancelado.
A Sema afirmou também estar ciente da sobreposição da fazenda de Sousa com a TI Governador e que o CAR da fazenda está pendente desde 2021, seguindo determinação do governo federal. Os CARs das outras três fazendas onde foi detectado desmatamento ilegal na cabeceira do Buriticupu serão analisados “em breve”.
Para Haroldo Paiva de Brito, promotor de Justiça especializado em conflitos agrários no Maranhão, a situação fundiária no estado “é um verdadeiro caos”.
“O estado do Maranhão não sabe onde estão as terras devolutas”, diz. “E não sabe ainda como suas terras foram parar nas mãos de determinados proprietários.”
A Funai disse que segue todos os trâmites de licitação para contratos de aluguel estabelecidos pela Advocacia-Geral da União, que não requer “nenhuma exigência de pesquisa relacionada a crimes ambientais, tampouco certidão negativa”.
PRESSÃO DE DENTRO PARA FORA
A criação de gado nos arredores de Arariboia também provocou o aumento da demanda de extração de madeira dentro da TI para fazer estacas para cercas.
“Porque ninguém está tirando a estaca ali para mandar para outro estado, é para ser usado por aqueles fazendeiros mesmo”, diz Ciclene Maria Silva de Brito, superintendente do Ibama no Maranhão.
A criação ilegal de gado dentro da Arariboia é consequência da extração ilegal e descontrolada de madeira no território durante muitos anos, afirmam as autoridades e os guardiões da floresta.
Vários municípios ao redor da Arariboia têm como principal meio econômico a extração de madeira, que é “o maior problema da região”, diz Sandro Jansen Castro, superintendente regional da Polícia Federal no Maranhão.
Em 2023, a Polícia Federal realizou sete operações contra atividades madeireiras ilegais dentro e nos arredores da Arariboia, junto com o Ibama e a Funai. Durante as operações, 15 pessoas foram presas, 54 serrarias foram destruídas ou suspensas e 2.374 metros cúbicos de madeira serrada foram apreendidos.
O valor dos bens apreendidos ou bloqueados totalizou cerca de R$ 2,6 milhões, de acordo com informações obtidas pela Mongabay.
Duas operações que abrangeram as regiões de Amarante e Arame foram responsáveis pela maior parte dos números: 75% do valor total de bens apreendidos ou bloqueados, 81% da madeira apreendida, 7 prisões e 42 serrarias destruídas ou suspensas.
“Se eu tenho 20 empreendimentos que não têm licença, trabalhando com madeira e no entorno eu tenho várias terras indígenas, com certeza, está saindo dali”, diz Brito, solicitando a atuação do município no combate às ilegalidades “porque senão fica uma luta muito desigual”.
Folha de São Paulo. Esta reportagem foi publicada originalmente no site Mongabay Brasil (leia a versão na íntegra). O trabalho recebeu suporte do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center, do qual a repórter Karla Mendes é bolsista.